Por Caetanno Goldbeck Freitas
Jornalista, de Canberra (Austrália)
Sábado, 4 de janeiro de 2020. Onze horas da noite. Acabo de sair da casa de amigos em um bairro chamado Crace, em Canberra, capital da Austrália. Ao abrir a porta, levo um susto. A fumaça de hoje está mais forte, pensei. Apesar de estar acostumado com ela, pois as queimadas já haviam começado há meses, desta vez algo parecia diferente. A névoa era densa, e eu mal conseguia enxergar a rua.
A poucos metros de distância estavam os carros, quase invisíveis por conta da escuridão e do nevoeiro. Caminhei em direção ao meu veículo estacionado na esquina e, nesse curto trajeto, pude sentir algo estranho invadindo meus pulmões, entrando aos poucos por minhas narinas à medida que eu respirava. Abri a porta do carro e fechei rapidamente para a fumaça não entrar. Dei a partida no motor, liguei os faróis e pasmei novamente. Parecia neve, mas não era. Eram cinzas desabando do céu.
Eu estava em choque. Dirigi por duas quadras, parei no acostamento e decidi gravar um vídeo com o celular, tamanho espanto. Nunca havia presenciado algo parecido. Era realmente assustador. Lembrei ligeiramente dos invernos mais rigorosos que passei na vida, um deles aqui mesmo em Canberra, onde enfrentei -7ºC e uma cerração intensa, capaz de esconder da visão pontos de referências próximos. Não era neblina, eu sabia, mas foi inevitável fazer a comparação. Inclusive mencionei no vídeo que compartilhei com a família e amigos mais próximos assim que cheguei em casa, momentos antes de pensar que minha hora havia chegado, aos 31 anos.
Com as mãos tapando o nariz, na falta de uma máscara – item que estava esgotado nas lojas da cidade – entrei em casa. Achei que estaria protegido da fumaça que vi do lado de fora. Mero engano. O lugar onde moro havia sido invadido.
A Carolina e o Gustavo, amigos que dividem a casa comigo, compartilhando a rotina diária, estavam chocados sentados na mesa da cozinha. A luz ligada deixou clara a gravidade da situação. Falamos rapidamente, já era tarde. Cada um foi para o seu quarto para tentar dormir. Logicamente, meu quarto também foi afetado. A fumaça entrou em todos os cômodos da casa, por brechas de janelas e portas, fechadas, e através da tubulação do sistema de ar-condicionado central da casa. A opção de abrir as janelas era inexistente.
Minutos depois, a respiração começou a falhar. Faltava oxigênio, era muita fumaça. Comecei a tossir, meus olhos lacrimejaram instantaneamente. Meu coração disparou. Andei pela casa entrando em desespero. Pensei que desmaiaria e morreria ali mesmo, naquele momento. Molhei uma toalha de rosto, tapei boca e nariz, num instinto instantâneo de sobrevivência. Ligar o ar-condicionado só pioraria as coisas. Então, liguei o ventilador, imaginando que talvez isso tirasse um pouco da fumaça do meu quarto.
Minha mente era um turbilhão de pensamentos. Se precisar sair de casa, vou enfrentar as mesmas condições na rua até chegar a algum ponto seguro. Será que corro para o hospital? Deve estar abarrotado de pessoas na mesma situação. Para onde vou, então? Pegar a estrada com o carro e dirigir até onde não houver fumaça? Ligar para o serviço de emergência? O que fazer? Não conseguia pensar direito em uma solução.
O ventilador e a toalha úmida no rosto ajudaram um pouco. Mas ainda era muito complicado respirar. Aumentei a velocidade do ventilador, encharquei uma segunda toalha, fechei a porta do quarto e coloquei na parte de baixo para evitar que a fumaça continuasse a entrar. Foi quando a segunda crise respiratória veio com toda força.
Decidi ficar em casa. O ventilador e a toalha úmida no rosto ajudaram um pouco. Mas ainda era muito complicado respirar. Aumentei a velocidade do ventilador, encharquei uma segunda toalha, fechei a porta do quarto e coloquei na parte de baixo para evitar que a fumaça continuasse a entrar. Foi quando a segunda crise respiratória veio com toda força. A toalha de rosto que me protegia secou e comecei a tossir de novo. Perdi o ar. Corri para o banheiro e molhei mais uma vez a toalha. Recuperei a respiração.
O relógio marcava três horas da madrugada. Quatro horas haviam se passado. Precisava dormir, pois tinha de trabalhar cedo pela manhã. Falei para mim mesmo que ficaria tudo bem. O ventilador já tinha ajudado bastante a tirar a fumaça do meu quarto. Seria melhor deixar a porta aberta? Deitei na cama novamente, apaguei a luz e tentei dormir. Obviamente não seria uma tarefa fácil. Não conseguia respirar fundo. Tinha de respirar pouco, bem pouco. Não era o suficiente.
Depois disso, não lembro exatamente o que aconteceu para descrever em detalhes. Não tenho certeza se desmaiei ou dormi, mas acordei em poucas horas. A fumaça havia ido embora de casa. Abri a persiana e vi que do lado de fora ela também não era mais tão forte. O vento da madrugada, o mesmo que a trouxe no fim da tarde do dia anterior, mudou de direção e levou-a para outro lugar.
No dia seguinte, a névoa voltou. Dois dias depois também. E assim passaram-se vários dias sobrevivendo à fumaça tóxica das queimadas. Depois daquela noite, a fumaça não entrou mais em minha casa, mas continuava lá fora. Para mim, tratou-se de uma experiência de quase morte. Refleti sobre o quanto a vida é frágil e o quanto nós, seres humanos, somos vulneráveis e impotentes perante a natureza.
Tensões crescentes
A Austrália está passando por um dos piores momentos de sua história. Antes mesmo de as queimadas começarem, o país enfrentava uma seca devastadora em praticamente todos os Estados. Não chovia havia muito tempo, em meados de setembro de 2019, e as perdas inevitáveis na agropecuária eram a grande preocupação.
O governo federal entrou em ação e concentrou esforços para tentar minimizar os impactos da seca para fazendeiros e agricultores. Milhões de dólares foram retirados do caixa e colocados à disposição da população afetada pela falta de chuva para que ela pudesse sobreviver após ter perdido colheitas inteiras, todo sustento previsto para o ano.
Além disso, a onda de calor naquele momento era muito intensa. As temperaturas à época bateram recordes históricos para o período e passavam facilmente dos 40ºC em algumas regiões. A soma desses dois fatores, calor intenso e seca extrema, foi a força motriz para o início das queimadas. Condições perfeitas para o fogo começar e se alastrar rapidamente, com a ajuda do vento. Tempestades isoladas atingiram áreas da seca, mas as descargas elétricas acabaram dando o start nas queimadas, em alguns casos.
Os serviços de emergência no país registraram os primeiros fogos no fim de julho, que foram tratados normalmente, como se mais uma temporada de queimadas estivesse começando um pouco mais cedo. Contudo, foi no início de novembro que a situação saiu do controle. Incêndios de grandes proporções atingiram florestas, parques nacionais e chegaram muito próximo de áreas urbanas em Sydney e Melbourne. As zonas metropolitanas das duas cidades, porém, acabaram sendo atingidas.
As chamas tomaram conta dos noticiários australianos. Rádio, TV, jornais e sites debruçaram-se na cobertura jornalística a partir de dezembro. Cidades inteiras tiveram de ser evacuadas, especialmente na Costa Leste do país, ao sul de Sydney, região famosa pela beleza de suas praias e da natureza como um todo. Famílias já em férias tiveram de fugir do fogo. Imagens impressionantes que rodaram o mundo mostram a fúria do fogo, e pessoas tendo de se refugiar na beira das praias.
Enquanto isso, milhares de animais indefesos pediam socorro nas florestas. Símbolos da Austrália, coalas e cangurus morriam carbonizados na mata em chamas. Alguns conseguiram fugir, outros foram resgatados pela população local. O vídeo de uma mulher resgatando um coala em uma árvore viralizou.
Rodovias importantes do país foram bloqueadas por tempo indeterminado. O Estado de Nova Gales do Sul, sozinho, chegou a ter 150 focos de incêndio em seu território, sendo pelo menos um terço deles fora de controle. Não havia mais condições de combatê-los. Moradores perderam propriedades inteiras. Pessoas morreram tentando defender suas terras.
As queimadas na Austrália já causaram a morte de pelo menos 28 pessoas e devastaram uma área de mais de 10 milhões de hectares, destruindo cerca de 3 mil propriedades. Os Estados mais afetados são Nova Gales do Sul e Vitória.
Como jornalista, tive de visitar Cobargo. Eu e o repórter fotográfico Anderson Fetter passamos dois dias naquela região assolada pelo fogo do Ano-Novo. Por um lado, ficamos chocados com tamanha destruição e tristeza. Por outro, impressionados positivamente com a rede de solidariedade estabelecida logo após a tragédia.
Em meio ao caos, o primeiro-ministro da Austrália, Scott Morrison, entendeu que seria um ótimo momento para sair de férias. Com sua viagem planejada para dezembro, Morrison foi ao Havaí com a família. Tentou sair discretamente, sem chamar a atenção. Porém, como já era esperado, a notícia vazou no mesmo dia. Ele passou a ser bombardeado pela mídia australiana, que compartilhava o sentimento de fúria da população. A sensação era de que, quando a nação mais precisava do seu líder, ele deixou um substituto no seu lugar.
As duras críticas fizeram o primeiro-ministro voltar do Havaí às pressas para tentar salvar seu governo. Pouco adiantou. A população estava enfurecida. Ao invés de intervir de imediato na situação, Morrison ainda teve tempo para posar sorridente em uma foto com a seleção nacional de críquete, em Sydney, causando ainda mais revolta. Quando finalmente se deu conta do que deveria fazer, Morrison pegou a estrada para visitar áreas devastadas pelas queimadas e oferecer apoio às vítimas.
Em Cobargo, uma pequena cidade de Nova Gales do Sul totalmente consumida pelos incêndios, o primeiro-ministro encontrou apenas animosidade. Em frente às câmeras para sua primeira visita a uma área afetada, moradores e bombeiros que lutavam contra os incêndios recusaram aperto de mãos. Em alguns casos, Morrison chegou a pegar a mão das pessoas contra a vontade delas. Ele foi xingado por moradores mais exaltados, que o chamaram de “idiota”. A impressão que se tem é de que Morrison talvez já tenha selado seu destino para a próxima eleição.
Como jornalista, tive de visitar Cobargo. Eu e o repórter fotográfico Anderson Fetter passamos dois dias naquela região assolada pelo fogo do Ano-Novo. Por um lado, ficamos chocados com tamanha destruição e tristeza. Por outro, impressionados positivamente com a rede de solidariedade estabelecida logo após a tragédia. Foi o que aconteceu no país inteiro. Milhares de pessoas se mobilizaram para ajudar vítimas.
Na semana que passou, os incêndios foram temporariamente controlados pela tão aguardada chuva no país. A previsão é de que a maioria dos focos sejam extintos. Os serviços de emergência, no entanto, não param de trabalhar, pois aprenderam a lição de não subestimar a fúria da natureza.