Por Veronica Korber Gonçalves
Pesquisadora de meio ambiente e relações internacionais, professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da UFRGS
As manchas de petróleo bruto, de origem ainda incerta, que desde setembro atingem mais de 200 praias do Nordeste, explicitam as dificuldades do Estado brasileiro em reagir a desastres ambientais de grandes proporções. As cenas do óleo avançando por áreas protegidas, impactando as populações litorâneas, indicam um cenário de extrema gravidade. Mas a falta de coordenação do poder público federal para conter os danos agrava-o ainda mais.
O Brasil possui um arcabouço jurídico que deveria nortear as ações do Estado: a Constituição de 1988 prevê, no seu capítulo dedicado ao meio ambiente, que o poder público deve agir para evitar a ocorrência de danos ambientais e, caso esses ocorram, adotar as medidas de mitigação e contenção dos danos. O causador do problema – ainda desconhecido – tem responsabilidade de mitigar, reparar e compensar danos. Mas isso não exclui a responsabilidade do poder executivo federal.
Passados mais de 50 dias do conhecimento do desastre, o que se vê são agentes dos órgãos ambientais estaduais e nacionais, bem como agentes da Marinha, agindo de maneira pouco coordenada e com recursos escassos, sem que tenha sido acionado o Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Águas sob Jurisdição Nacional. O plano só foi mencionado pelo ministro do Meio Ambiente mais de um mês após o início do aparecimento do óleo.
A demora e o descaso com que o tema foi tratado até muito recentemente afrontam os princípios da prevenção e da reparação integral por danos causados e dão indícios da incapacidade do Brasil de lidar com grandes desastres ambientais. Somente em 2019 assistimos também ao rompimento de uma barragem da Vale em Brumadinho (MG) e ao agravamento dos índices de desmatamento na Amazônia, em um total de três desastres de grandes proporções. O que eles têm em comum? Os três tiveram consequências mais graves em razão da desestruturação da política ambiental brasileira, que consiste em redução do orçamento e da capacidade de atuação dos órgãos ambientais, do desmonte dos comitês temáticos e do enfraquecimento da legislação ambiental.
O Brasil é um ator relevante na política ambiental global, considerando sua megabiodiversidade, sua participação nas emissões globais de gases do efeito estufa, bem como o tamanho de sua população e de sua economia. As ações ou omissões do país em relação ao meio ambiente dizem respeito não apenas a nós, brasileiros, mas ao equilíbrio ecológico do planeta. Nos mais variados campos acadêmicos, estudos científicos sobre as mudanças climáticas confirmam uma transformação sem precedentes das condições biofísicas do planeta. Essa transformação é causada pelas intensas ações humanas de exploração, produção, consumo e destinação final, numa economia baseada na exploração do ambiente e, em especial, no uso de combustíveis fósseis, especialmente nas últimas sete décadas.
A defesa da 'soberania', em 2019, não pode significar um cheque em branco para a destruição.
Nesse contexto, a defesa da “soberania”, em 2019, não pode significar um cheque em branco para a destruição. Não se pode, neste século, negar riscos, ameaças e efeitos físicos interconectados do nosso modelo de desenvolvimento, mantendo uma imagem obsoleta do mundo construída sobre fronteiras, que conferiria ao Estado o poder de explorar o ambiente da forma que desejasse. É preciso que assumamos a responsabilidade de viver num país continental com extraordinária diversidade de ecossistemas e de riqueza hídrica.
É preciso fortalecer o sistema de licenciamento ambiental (e não flexibilizar ainda mais, conforme projeto de lei em análise no Congresso), e investir nos órgãos de controle e fiscalização ambiental nos três âmbitos: federal, estadual e municipal. É urgente implementar a Política Nacional de Mudanças Climáticas e refletir sobre as chamadas “externalidades negativas” de um modelo de desenvolvimento centrado nos combustíveis fósseis – como exemplificado pelo óleo vazado em nosso litoral. Afirmar a nossa soberania, neste momento, é defender as gentes, seus territórios e os ecossistemas brasileiros. É debater sobre as escolhas que fazemos enquanto sociedade para ressignificar a nossa relação com o ambiente.