Num momento em que as calotas polares estão desestabilizadas pelo aumento das temperaturas, um novo e muito aguardado relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) alerta para as consequências para a humanidade do derretimento das geleiras das montanhas nas próximas décadas.
De acordo com o rascunho oficial do relatório da próxima sessão do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), obtido com exclusividade pela AFP, as calotas da Groenlândia e da Antártica perderam mais de 400 bilhões de toneladas de massa por ano na década anterior a 2015. Isso corresponde a um aumento do nível do mar de quase 1,2 milímetro por ano.
As geleiras das montanhas também perderam cerca de 280 bilhões de toneladas de gelo anualmente no mesmo período, elevando o nível do mar em 0,77 mm a cada ano.
Milhões de pessoas afetadas
— Nos últimos 100 anos, 35% da elevação do nível do mar no mundo ocorreu devido ao derretimento das geleiras — disse Anders Levermann, professor de climatologia do Instituto de Pesquisa Potsdam sobre os efeitos das mudanças climáticas.
Existem cerca de 200 mil geleiras na Terra e o fato de serem pequenas em comparação com as calotas polares as torna especialmente vulneráveis ao aumento da temperatura. As geleiras do Himalaia são fontes de água cruciais para 250 milhões de pessoas nos vales circundantes e alimentam os rios dos quais mais de 1,6 bilhão de pessoas dependem para alimentação, energia e renda.
Um estudo citado no relatório do IPCC alerta que as geleiras das grandes montanhas asiáticas podem perder mais de um terço do gelo, mesmo que os humanos consigam diminuir as emissões de gases de efeito estufa e contenham o aquecimento global a 1,5ºC.
Uma economia mundial que continue a basear por décadas nos combustíveis fósseis pode causar uma perda de dois terços do gelo.
— A água potável será afetada, a agricultura também, o que atingirá milhões e milhões de pessoas — garante Harjeet Singh, da ONG da ActionAid.
O documento do IPCC afirma que as zonas do centro e do oeste do Himalaia já estão enfrentando uma queda palpável na quantidade de água para irrigação. O texto também alerta que em regiões com baixa cobertura de gelo, incluindo Europa Central, Norte da Ásia e Escandinávia, as geleiras serão reduzidas em 80% em 2100, de acordo com as projeções.
Um estudo realizado este ano por cientistas na Suíça advertiu para o risco de emissões não controladas que poderiam causar o desaparecimento de mais de 90% das geleiras alpinas no final do século. De acordo com Harry Zekollari, da Universidade de Tecnologia de Delft, na Holanda, a maioria das pessoas não está ciente da importância dessas gigantescas estruturas de gelo.
— Uma geleira é um reservatório. Uma geleira saudável normalmente derrete no verão e fica um pouco maior no inverno. Isso significa que quando as pessoas precisam de mais água, procuram pelas geleiras — explica.
Cenário de pesadelo
Os habitantes de La Paz, capital da Bolívia, obtêm pelo menos 30% de sua água das geleiras dos Andes durante os meses secos do inverno. Mas em 2016, "quase 100 bairros ficaram completamente sem água por mais de um mês, foi como um filme de terror do futuro", indicou à AFP Marcos Andrade, diretor do Laboratório de Física Atmosférica na Universidade de San Andrés.
— As pessoas estavam brigando por água — relatou.
Segundo ele, o paradoxo é que atualmente "temos mais água das geleiras devido ao seu derretimento e os agricultores podem não estar cientes disso", diz ele.
— As coisas vão dar certo para eles agora, mas quando a água se tornar escassa, lutaremos por ela — aponta.
Segundo o IPCC, é provável que o derretimento das geleiras continue aumentando a curto prazo, antes de cair no final do século, resultando em mais deslizamentos de terra, avalanches e água poluída.