O Rio Grande do Sul registrou queda de 19,4% na procura pela primeira carteira de motorista de automóvel de 2013 a 2016, segundo dados do Departamento Estadual de Trânsito (Detran-RS). Também houve queda na procura por habilitação de motos: entre 2011 e 2016, a redução foi de 39,3%. Especialistas acreditam que a crise econômica e uma tendência de desinteresse das classes média e alta pelo automóvel são os responsáveis pelo fenômeno.
O número de novas habilitações do tipo B (automóveis) começou a entrar em queda em 2013, segundo dados do Detran. Se entre junho daquele ano e maio de 2014 foram registradas 123.525 novas habilitações para carro pelo Detran, o número caiu para 99.553 no mesmo período de 2015 a 2016.
A redução na procura por habilitações do tipo A (motocicletas) começou dois anos antes. Entre junho de 2011 e maio de 2012, houve o registro de 25.629 novas carteiras para moto, muito acima das 15.560 registradas em igual período de 2015 a 2016.
Segundo João Fortini Albano, doutor em transporte e professor do Laboratório de Sistemas de Transporte da UFRGS, a crise econômica, a queda nos incentivos fiscais para aquisição de veículos e o desinteresse das classes mais altas por automóveis são protagonistas do fenômeno.
– A queda no número de CNHs coincide com a queda na venda de veículos. Tanto a crise econômica como o fim de incentivos fiscais, como o IPI, fizeram as pessoas repriorizarem seus investimentos – afirma o engenheiro, também se referindo ao fim, em dezembro de 2014, da redução do Imposto sobre Produtos Industrializados, o que encareceu o preço de veículos.
Em um momento no qual o desemprego atinge 11,4 milhões de brasileiros, cerca de 11,2% da população do País, e com uma inflação de 9,32% em maio a corroer o poder de compra da população, comprometer parte do orçamento para a primeira a habilitação se torna, cada vez mais, algo a ser postergado. As carteiras A (motos), B (carros) e AB (ambos) custam R$ 1.522, R$ 1.961 e R$ 3.044, respectivamente.
A queda no registro de novas habilitações anda lado a lado com a desaceleração no ritmo de compra de novos automóveis. Dados da Federação Nacional de Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave) apontam que o número de emplacamentos no Brasil caiu, de 2012 para 2016 e no intervalo de janeiro a maio, 44,2%. O Detran-RS não registra o número de emplacamentos mês a mês, mas os dados mostram que houve queda de 37,8% no registro de novos carros entre 2013 e 2015.
– Sem sombra de dúvidas, a redução do mercado automobilístico nos últimos anos impacta naturalmente o número de emissões de novas carteiras. Cerca de 70% das vendas de carro são por financiamento. À medida que a sociedade se endivida, e paralelamente com a restrição de crédito feita pelos bancos, a demanda por novos carros cai junto – explica Antônio Jorge Martins, coordenador do MBA em Gestão Estratégica de Empresas da Cadeia Automotiva da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em São Paulo.
Na prática, com o orçamento apertado, a compra de um novo carro fica de lado – assim como a aquisição da carteira. É o caso da universitária Luana Redel, de 22 anos. Natural de Cachoeira do Sul, ela se mudou para Porto Alegre no início de 2015 para cursar Nutrição na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). A estudante até gostaria de fazer a carteira de motorista para ter um automóvel, mas ainda não consegue custear a primeira habilitação e os gastos com um veículo .
– Como sou do Interior, minha família tem que pagar aluguel, alimentação e despesas com livros e xerox da faculdade. Fica muito caro gastar com a carteira de motorista e um carro. Só vou conseguir fazer isso quando me formar e tiver meu próprio emprego – afirma.
Jovens rejeitam civilização do automóvel
Especialistas identificam um pensamento cada vez mais em voga nos jovens de classe média e alta: o desinteresse pelo automóvel. Uma pesquisa da consultoria brasileira Box1824, por exemplo, entrevistou mais de 3 mil jovens entre 18 e 24 anos, em 146 cidades, e apontou que comprar um carro é prioridade para apenas 3% dos entrevistados.
– Os mais jovens não veem mais o carro como símbolo de status e de afirmação. Hoje há uma maior valorização da sustentabilidade. Eles preferem utilizar ônibus ou bicicleta – afirma João Fortini Albano, professor da UFRGS.
A tendência, que aos poucos exerce influência no Brasil, surgiu forte na Europa e em algumas regiões dos Estados Unidos, onde o transporte público recebe altos investimentos, e a malha cicloviária perpassa grande parte da cidade. Com mais opções para se deslocar e uma maior sensibilidade aos impactos do carro para o ambiente, a nova geração vê o automóvel como um bem supérfluo ou mesmo algo a ser evitado.
Uma pesquisa divulgada em 2014 pela Rockefeller Foundation e pela Transportation for America, por exemplo, feita com jovens de 18 e 24 anos dos Estados Unidos, revelou que três a cada quatro entrevistados gostariam de viver em locais onde não precisassem de carro.
É o pensamento compartilhado pelo designer de produto Lucas Couto, de 23 anos. Natural de Belo Horizonte, ele vive desde janeiro do ano passado na Capital gaúcha. Morador do Bom Fim, costuma ir de bicicleta ou a pé até o trabalho, no bairro Rio Branco. Possuir um carro ou moto, para ele, não faz sentido. Ele prefere gastar um pouco mais com o aluguel de um apartamento em uma região central do que arcar com os custos de um veículo próprio.
– Eu prefiro morar em uma região central e fazer tudo a pé ou bicicleta. Se preciso ir mais longe, pego Uber ou táxi. No fim, dá no mesmo do que se eu morasse longe e tivesse um carro – explica o designer.
Essa mentalidade era algo impensável décadas atrás, ressalta Ana Rosa Cé, professora de Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da PUCRS. Ela lembra do projeto rodoviário da década de 1960, focado na construção de viadutos e vias expressas. A Terceira Perimetral, por exemplo, foi pensada em 1959.
– As pessoas agora querem morar próximo ao trabalho, ao supermercado e às facilidades diárias. Isso está dentro da quebra de um paradigma. Quem se importava com morar perto do supermercado há 30 anos? – questiona.
Habilitação está em baixa, mas carro ainda é sonho de consumo
Apesar da queda na procura por habilitações, carro ainda é um sonho da maior parte da população
Mesmo com a existência de um novo perfil de consumidor, especialistas fazem a ressalva de que a maioria dos brasileiros ainda quer adquirir um veículo, mesmo que não possa fazê-lo no momento. Essa vontade é presente, sobretudo, nas classes mais baixas, que não tiveram acesso ao produto e sempre o desejaram.
– No Brasil, o primeiro grande bem de interesse na faixa de 18 a 24 anos é o carro. Ele ainda é um desejo, sem sombra de dúvidas - afirma Antônio Jorge Martins, da FGV.
De fato, os dados apontam para um mercado a ser bem explorado no futuro. Em 2015, a frota de veículos brasileira fechou com 42,6 milhões de unidades, conforme a Associação Brasileira de Indústria de Autopeças. Com as estimativas do IBGE de que o Brasil é habitado hoje por 206 milhões de pessoas, temos um carro a cada 4,8 indivíduos. Parece um bom número, mas ainda seguimos distantes dos patamares europeus, de um carro por habitante.
– Foi criada uma mentalidade de que o automóvel é um bem de consumo e um indicador de qualidade de vida. O carro ainda é um sonho de consumo. Talvez ele perca a importância ao longo das próximas décadas, mas ele ainda é um facilitador da nossa vida enquanto não temos um transporte público mais eficiente – resume Ana Rosa Cé, professora de Urbanismo na PUCRS.