“ιηϲουϲυν”, “μβηθηκαι”, “καιαυτοϲα”: esses são alguns trechos do manuscrito mais antigo já encontrado contendo o Evangelho de Pseudo-Tomé – um texto apócrifo transmitido há séculos que relata a infância de Jesus Cristo. A descoberta do papiro foi feita pelo gaúcho Gabriel Nocchi Macedo e pelo húngaro Lajos Berkes e traz novas contribuições para entender a origem do texto, cujo manuscrito original permanece desconhecido.
Macedo, hoje com 37 anos, despediu-se de Porto Alegre aos 18. Trancou a faculdade e foi para a Bélgica, onde graduou-se em Letras Clássicas – um misto de grego, latim, literatura, história, filosofia e arqueologia – na Universidade de Liège. Nesse percurso, descobriu a papirologia, campo forte na universidade, que detém um centro de pesquisa com esse foco, do qual é diretor. Macedo mora em Bruxelas e é professor de Papirologia e Grego na mesma universidade.
A descoberta
Grande parte da atuação do papirólogo – que trabalha com fragmentos de papiros – é explorar coleções físicas ou digitalizadas, observando papiros de interesse ou que talvez sejam desconhecidos ou não estudados. Era isso que a dupla fazia no escritório de Berkes, em Berlim, quando descobriu o documento de 11 por cinco centímetros. Os dois já haviam trabalhado com uma peça do acervo da Universidade de Hamburgo – que está disponível online, digitalizado – e sabiam que ainda havia papiros gregos não estudados.
— Líamos um pouco de cada papiro para ter uma ideia do que se tratava, até que achamos esse, no qual lemos algumas palavras que nos pareceram imediatamente um pouco interessantes, diferentes do que se acha normalmente. Lemos as três primeiras letras de Jesus, porque a palavra estava cortada ao meio, mutilada. Reconhecemos ali o nome de Jesus, e, daí, pudemos passar à identificação do texto — conta Macedo.
Os pesquisadores inseriram algumas palavras identificadas em um banco de dados que reúne toda a literatura grega, desde os mais antigos textos até a Idade Média. Quase que imediatamente, Berkes e Macedo perceberam que se tratava do Evangelho de Pseudo-Tomé – um texto apócrifo (não incluído na Bíblia) que traz supostos relatos da infância de Jesus, no período entre cinco e 12 anos de idade, época não abordada no livro sagrado. O trecho no papiro descreve um milagre que teria sido realizado por Cristo.
— Foi interessante, foi uma surpresa. E esse texto nos era completamente desconhecido, nós nunca havíamos ouvido falar. Então nós sentimos uma grande animação, porque era um desafio para nós — relata Macedo.
Inicialmente, os pesquisadores não sabiam que estavam encontrando o registro mais antigo de uma cópia do texto – a consciência do fato, entretanto, veio rapidamente, ao perceber que os mais antigos, até então, eram manuscritos medievais e que não havia nada do período da Antiguidade. Macedo e Berkes debruçaram-se sobre o texto por um ano e meio antes de publicá-lo.
— Foi um bom sentimento, foi um sentimento de ter feito uma descoberta. Nós quisemos imediatamente comunicar a colegas, a pessoas, sobretudo teólogos e pessoas que conheciam esse texto — afirma.
O valor histórico do papiro
O texto é “extremamente complexo”, define Macedo: é conhecido em nove línguas, e, em algumas delas, em várias versões – somente em grego, há pelo menos quatro diferentes. A mais antiga versão grega conhecida antes do papiro, que era considerada também a mais próxima do original, está em um manuscrito do século 11, copiado em Chipre. Havia, ainda, um manuscrito latino do século 6, que foi perdido, conforme o pesquisador. Isso torna o documento encontrado o mais antigo testemunho do texto, já que, conforme os estudos da dupla, data do quarto ou quinto século.
Como na grande maioria dos papiros com textos literários, a datação foi feita unicamente pela paleografia – ou seja, pela análise da escrita, visto que, na maioria dos casos, não há outro elemento que permita datar, como dados sobre a escavação arqueológica. Assim, a datação é realizada por comparação das escritas ao longo do tempo, analisando formas e traçados.
Não há dados sobre a descoberta do documento, nem sobre a data. Em suas pesquisas, Macedo e Berkes concluíram que o objeto original não era uma edição completa do texto. Tratava-se, provavelmente, de um objeto mais informal, com algumas linhas escritas por alguém – não se sabe quem, onde, nem quando exatamente –, provavelmente com o objetivo de exercitar a escrita.
— Se vê que é uma pessoa que não escrevia muito bem, que não dominava perfeitamente a escrita. Isso é muito comum na documentação papirológica. Nós não podemos dizer se realmente isso foi feito em uma instituição escolar ou de modo informal. Talvez seja alguém que estivesse aprendendo a escrever para se tornar copista, escriba, e praticando. Mas isso é impossível de dizer — pondera Macedo.
A pedido da reportagem de Zero Hora, o professor traduziu o conteúdo do pergaminho fragmentado – que é uma transcrição do início do Evangelho –, incluindo os trechos ausentes no manuscrito, no que seria a versão completa do texto: “(Jesus) pegou argila mole da mistura e, a partir dela, modelou 12 pardais. Era dia de Shabat, e várias crianças estavam com ele. Vendo o menino Jesus fazendo isso com outras crianças, um judeu foi até José, o pai dele, e acusou o menino Jesus, dizendo que ele havia feito 12 pardais de argila no dia de Shabat, o que não era autorizado. José então foi até Jesus e o repreendeu dizendo: ‘Por que estás fazendo isso no dia de Shabat?’. Jesus bateu as mãos e gritou, e os pássaros voaram sob os olhos de todos os presentes, e ele disse: ‘Andem, voem como pássaros vivos.”
Tem um valor histórico, porque é o único testemunho Antigo que se tem de um texto que foi importante nesse primeiro cristianismo e depois na Idade Média
GABRIEL NOCCHI MACEDO
Professor de Papirologia na Universidade de Liège
— Ele tem um valor histórico, porque é o único testemunho Antigo que se tem de um texto que foi importante nesse primeiro cristianismo e depois na Idade Média. Para nós, do ponto de vista de um papirólogo ou de um historiador, é uma peça do imenso quebra-cabeça que tentamos montar, que é o conhecimento do passado. Que seja, nesse caso, o conhecimento do primeiro cristianismo, o conhecimento da cultura cristã no Egito, depende de qual ângulo se vê — aponta Macedo.
O papirólogo ressalta que a descoberta não prova nenhum aspecto da Bíblia, nem há o intuito de procurar tais indícios nesta ciência – seria o mesmo que procurar, por exemplo, provas da existência de Zeus ou dos trabalhos de Hércules.
O que muda com a descoberta
A descoberta é um elemento importante para expandir o conhecimento a respeito do Evangelho de Pseudo-Tomé. Pelo fato de ser conhecido em várias línguas, houve hipóteses de que teria sido escrito originalmente em siríaco. O documento encontrado, porém, corrobora outra hipótese, existente há bastante tempo, de que a língua original é o grego – o que é, de fato, mais provável, na avaliação de Macedo. Os professores citam ainda, no artigo escrito pela dupla, publicado na revista científica Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik (ZPE), que o fragmento é de “extraordinário interesse” também por sua data antiga e por provar que o texto estava em circulação entre os cristãos no Egito.
Do ponto de vista crítico e filológico, o achado permite tentar se aproximar mais do texto original – ao qual nunca há acesso, pois não há manuscritos próprios de autores antigos, como Platão, Cícero ou Virgílio. Por esse motivo, não se pode ter certeza, salienta Macedo. O papiro permite ter uma noção de como era a língua em termos de estilo, de construções gramaticais e outros elementos.
— Esse pequeno fragmento de papiro nos permitiu fazer algumas considerações interessantes sobre esse texto e sobre como ele mudou na sua história, nas suas várias versões, quando foi copiado de um manuscrito a outro. E, como esse é o mais antigo, nós temos bons argumentos para propor algumas novas avaliações sobre a língua e o estilo desse texto. E essas são as próximas etapas da nossa pesquisa — explica.
Papirologia
Ainda que lide com fragmentos de tempos remotos, a papirologia é um campo “vivo e dinâmico”, na avaliação do professor, justamente por trabalhar com descobertas. Muitos jovens também têm se interessado pela área. Contudo, como em toda área científica, sobretudo nas ciências humanas, os principais desafios são o número de vagas e o financiamento, principalmente em períodos de crise, aponta o professor.
A grande maioria dos textos não atrai um interesse tão grande do público geral, como neste caso, porque não contém textos literários ou cristãos. São “documentários”, isto é, textos da vida cotidiana: contratos, cartas, listas, documentos jurídicos, testamentos, entre outros. Por outro lado, são “extremamente preciosos” para historiadores, porque permitem conhecer a vida cotidiana dos antigos.