Partes de foguetes, satélites inoperantes e objetos perdidos por astronautas são alguns dos materiais que orbitam a Terra sem qualquer controle nem expectativa de recolhimento. Esses fragmentos, chamados de lixo espacial, têm aumentado nos últimos anos por conta do incremento na atividade humana fora do planeta.
Alguns deles são flagrados da Terra quando destruídos no atrito com a atmosfera, como foi o caso de um registro feito em agosto de 2023 em municípios gaúchos. Na maioria dos casos, a presença dos detritos não representa um perigo para os habitantes do planeta, mas a expansão do lixo espacial pode prejudicar a rede de satélites, atrapalhar o lançamento de equipamentos e missões no futuro, dizem especialistas.
As atividades no espaço são regidas por cinco tratados negociados nas décadas de 1960 e 1970 pela Organização das Nações Unidas (ONU). O principal é o Tratado do Espaço Sideral, de 1967, assinado por 111 nações, entra elas o Brasil. Para Tatiana Ribeiro Viana, doutora em Direito Espacial pela Sapienza Università de Roma, na Itália, as normas em vigor não são suficientes para lidar com o problema do lixo no espaço.
Segundo ela, falta uma definição jurídica sobre quais tipos de objetos integram o grupo de detritos; a única definição é técnica: trata o objeto como funcional ou não funcional.
— Os tratados internacionais não previram a questão dos detritos espaciais, porque, à época, não havia esse problema. O que existe são as chamadas guidelines (diretrizes), que são orientações de como mitigar detritos. Muitos especialistas, operadores de satélites e juristas defendem normas obrigatórias que tratem do tema. Nós precisamos atualizar os tratados, o que encontra resistência da parte de muitos países, ou criar um acordo internacional sobre a prevenção e mitigação dos detritos espaciais — diz.
Outro indicativo da insuficiência de regulamentação das atividades espaciais é que não há limites ou normas comuns para a exploração científica ou comercial.
— Não existe nenhuma regra que limite os lançamentos; ou seja, não posso dizer “você, Estado, pode lançar só cinco satélites por ano” — exemplifica Tatiana.
Segundo o Tratado do Espaço Sideral, o espaço pode ser explorado e utilizado livremente por todos os Estados. A responsabilidade por danos causados pelos objetos espaciais é do chamado Estado lançador, quem promove o envio ou é o responsável pelo território do lançamento – pode haver mais de um responsável, portanto.
Se houver, por exemplo, algum dano durante o lançamento de um satélite brasileiro, será o Brasil – e/ou eventuais lançadores – que responderá pelo problema. No caso de empresas privadas, a responsabilização será do país de origem da companhia ou do país que autorizou a missão. Por isso, acrescenta Tatiana, é importante que a regulamentação nacional das atividades espaciais esteja em conformidade com os tratados internacionais.
Os tratados internacionais não previram a questão dos detritos espaciais, porque, à época, não havia esse problema.
TATIANA RIBEIRO VIANA
Doutora em Direito Espacial
— O Estado que registra o satélite conserva sob sua jurisdição e controle esse objeto, seja no espaço ou em um corpo celeste. Em princípio, outro Estado ou operador não pode retirar da órbita um objeto sem ter a autorização de quem o registrou, mesmo que inativo: a não funcionalidade não altera o status jurídico internacional — pontua Tatiana.
Crescimento nos lançamentos
A Nasa, agência espacial dos Estados Unidos, define lixo espacial como qualquer objeto feito pelo homem que orbita a Terra e não tem mais utilidade. Esse tipo de detrito não existia até o início dos anos 1960, quando os primeiros satélites artificiais foram lançados.
As estimativas da agência norte-americana indicam a existência de 25 mil objetos maiores que 10 centímetros ao redor da Terra. Já o grupo de partículas entre um e 10 centímetros de diâmetro é de aproximadamente 500 mil. O número de fragmentos maiores que um milímetro ultrapassa 100 milhões.
O site Orbiting Now lista que há 9,4 mil satélites em diferentes órbitas da Terra; a maioria deles – 5,8 mil – da Starlink, empresa de internet via satélite do bilionário Elon Musk, também dono da Tesla e do X (antigo Twitter). O número é um salto na comparação com 2018, quando havia 2 mil satélites ao redor da Terra.
Um estudo do governo dos Estados Unidos que aborda a mitigação de efeitos ambientais dos dispositivos prevê que haverá mais de 60 mil satélites em órbita em 2030, grande parte deles na órbita baixa (na faixa de mil quilômetros de altitude) para a transmissão de internet.
Autoridades norte-americanas impuseram, em 2023, a primeira multa do tipo: a operadora Dish foi autuada ao equivalente a R$ 760 mil por não ter "desorbitado da forma correta" um satélite chamado EchoStar-7, em órbita desde 2002, segundo a Comissão Federal de Comunicações (FCC, na sigla em inglês).
Como limpar a órbita terrestre
A preocupação com o aumento do lixo fez a Agência Espacial Europeia (ESA na sigla em inglês) firmar uma parceria com a empresa suíça Clearspace. O objetivo é enviar, em 2025, uma sonda para tirar de órbita um pedaço de foguete, fazê-lo reentrar na Terra e, por fim, ser destruído na descida. Para Marcelo Zanetti, professor do curso de Engenharia Aeroespacial da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), iniciativas como essas podem causar efeito oposto ao esperado.
— Não existe nenhuma técnica segura para limpar a órbita terrestre. Qualquer objeto que você coloque em órbita para retirar outro pode causar um acidente e gerar mais lixo. Isso pode criar uma nuvem de detritos e comprometer novos lançamentos por um longo período de tempo — pontua.
Não existe nenhuma técnica segura para limpar a órbita terrestre.
MARCELO ZANETTI
Professor do curso de Engenharia Aeroespacial da UFSM
Se a limpeza espacial é algo complexo com a tecnologia disponível, a opção para mitigar a poluição é retirar satélites defeituosos ou que tenham chegado ao fim da vida útil, no que é chamado “reentrada controlada” na atmosfera da Terra; ou seja, colocar o objeto em um trajetória de retorno ao planeta.
— Um satélite em órbita baixa geralmente se desintegra na reentrada, porque o atrito é muito grande por conta da alta velocidade que ele está. Por isso não oferece risco (às pessoas na Terra). O problema maior é o caso do veículo lançador de foguetes falhar: aí você teria peças grandes sem tanta velocidade para gerar alta temperatura (na descida) e desintegrar o objeto; pode, então, cair um pedaço grande na Terra — acrescenta o professor da UFSM.
Os satélites geoestacionários – que acompanham o movimento de rotação da Terra a cerca de 35 mil quilômetros de altitude – apresentam outros empecilhos para a remoção, segundo o professor:
— Muitos deles podem não ter combustível para fazer uma reentrada com segurança. Assim, a opção é manobrá-lo para uma órbita cemitério (que pode ser acima dos 35 mil quilômetros de altitude), onde ficará até que alguém invente um jeito seguro de tirá-lo de lá.
A trajetória desses equipamentos é motivo de reclamação de astrônomos, porque a passagem dos satélites causa “riscos” nas imagens de telescópios da Terra. O acúmulo de lixo espacial poderá, no futuro, frear a exploração fora do planeta, avalia Ronan Arraes Jardim Chagas, engenheiro de Sistemas Espaciais do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
— Uma órbita poluída trará problemas para a humanidade quando formos tentar utilizar mais o espaço. A probabilidade de uma colisão ser fatal para um satélite é enorme porque as velocidades são altas (na órbita terrestre). Isso acabaria totalmente com a missão, seria dinheiro perdido, sem falar nos dados científicos. Isso seria ainda pior para objetos com seres humanos, como, por exemplo, uma estação espacial — diz.