Marcelo Fernandes de Aquino (*)
Processos mais avançados da tecnociência contemporânea desenham formas digitais de conhecimento. A interseção da tecnologia de informação, da biotecnologia e da nanotecnologia tornou-se possível graças a novas tecnologias. Trata-se do fenômeno contemporâneo e global da assim chamada transformação digital, que já está indo além do mundo dos negócios para adentrar à experiência humana e se imiscuir e entranhar na própria experiência da pessoa em seu ser de linguagem com os outros no mundo.
Entre as décadas de 1980 e 1990, a informática se estende às ciências da natureza, sobretudo às ciências da vida, desempenhando com relação aos fenômenos da vida o papel da matemática com relação aos fenômenos físicos. A partir de seus objetos de estudo e de seus métodos de ação, a informática constrói no século 21 esquema mental que a diferencia de todas as precedentes atividades tecnológicas e científicas.
A informática calcula em base à informação com ajuda de algoritmos, programas e aparatos computacionais de toda espécie. A informação é codificada nos dados numéricos, o algoritmo é o mecanismo conceptual do cálculo sistemático, o programa constitui a escritura precisa do algoritmo na linguagem apropriada, e a máquina é o objeto material capaz de fazer os cálculos necessários para transformar os programas em ação. A natureza física dos objetos materiais que servem para estocar os dados e fazer os cálculos é indiferente, pois a mesma informação pode ser estocada não importa em que plataforma, e o cálculo pode ser feito por uma máquina qualquer. Nenhum desses objetos conceituais e práticos se assemelha aos objetos dos séculos precedentes, na sua maioria ligados muito mais intimamente ao mundo físico. Muito frequentemente a informática está em contato direto com o mundo físico, por exemplo para o mensurar e o controlar e também com o mundo do vivente mediante inovações que ela possibilita em medicina e biologia. A desmaterialização não impede o contato com a matéria. Pelo contrário, ela pode enriquecê-la.
Redes digitais vêm se formando a partir das crescentes mobilidade e convergência das tecnologias emergentes. São modalidades novas e massivas de interação social tendo como foco o encontro dos mundos físico e virtual.
A partir da fusão do real e do digital, eclode importante processo de mudança social. O real e o digital, da mesma maneira como o ser humano e a máquina e a máquina e a máquina já interagem, passaram a se unir a partir da combinação do input do mundo com o input do código.
Algumas questões estão sendo postas no contexto dessa figuração planetária da humanidade sob a regência da tecnociência. A abertura da pessoa para a transcendência sobre o mundo e a sociedade continuará a mediar a expressão do dado mundano e social como interfaces entre realidade física e digital? No processo de a pessoa expressar o mundo e a sociedade, o homo technicus renunciará à prerrogativa essencial da sua humanidade, que é a interpretação do seu mundo e das razões do seu existir e do seu agir? A qualidade de vida será definida apenas em termos de objetos, uso, necessidades, satisfação, consumo?
Ninguém é verdadeiramente livre se não é capaz de dar razão da sua liberdade. A sociedade que se estrutura em torno da razão científico-tecnológica, forma mais audaciosa, universal e eficaz das razões, ainda não consegue oferecer à humanidade razões interpretativas e convincentes para o livre ser e o livre agir dos cidadãos dos continentes digitais.
A ciência, mediante a tecnologia, oferece aos humanos da sociedade contemporânea mil opções possíveis entre mil objetos. Mas a escolha só será verdadeiramente livre se eles puderem encontrar as razões que justifiquem e legitimem a presença de tais objetos no horizonte do desejo e das necessidades. Para tanto, será necessário que a pessoa comum interprete, ao menos na sua inspiração fundamental, a natureza do projeto de explicação científica e de transformação tecnológica do mundo.
(*) Reitor da Unisinos