Não haveria local mais simbólico para falar de barreiras que são derrubadas e novas realidades a serem desbravadas. A conferência Falling Walls (“paredes que caem”, em uma tradução livre) se propõe, todos os anos, a apresentar os maiores avanços mundiais em pesquisa nas áreas de ciência e sociedade em um evento instigante e visualmente atraente sediado na imponente Berlim, em 8 e 9 de novembro – o segundo dia marca a data exata em que começou a ruir, em 1989, o muro que dividia as partes ocidental e oriental da cidade desde a década de 1960, durante a Guerra Fria.
Em sua décima edição, estudiosos de renome e promissores jovens cientistas se reuniram nos arredores do Portão de Brandenburgo para apresentar resultados de suas pesquisas em medicina, engenharia, sustentabilidade, biologia, astronomia e política.
O Falling Walls Lab (abreviatura para “laboratório”, em inglês), em que uma centena de inovadores demonstra suas descobertas à plateia, é uma das atividades de aquecimento antes da agenda principal. Cada pesquisador tinha apenas três minutos para resumir, não raro, anos e anos de estudo.
E eram apenas três minutos, de fato, incluindo-se aí questionamentos dos jurados, sentados na primeira fila, e eventuais intervenções da plateia – além das respostas e dos comentários dos palestrantes, se desse tempo, e às vezes dava.
O som de um pigarro ecoava pela sala quando o relógio encostava nos segundos finais, e na marca exata do tempo total o palestrante era obrigado a parar de falar, sair do palco e dar lugar ao próximo. Uma simpática mestre de cerimônias, que tornava o vaivém suave, promovia breves (tudo tinha que ser rápido) sessões de relaxamento, a intervalos regulares, para que o público conseguisse enfrentar a maratona.
Neste ano, sagraram-se vencedores: a tcheca Marketa Klicova, criadora de um adesivo de nanofibra para uso cirúrgico que previne vazamentos (em uma intervenção no intestino, por exemplo) e acelera a recuperação; a nepalesa Ankita Poudyal, com um filtro de nanofibra para respiração que remove partículas e permite um bom fluxo de ar; o húngaro Adam Fulop, que desenvolveu luvas que convertem texto escrito para braile em tempo real, uma incrível ferramenta de acessibilidade para pessoas com deficiência visual; e o egípcio Ahmed Ghazi, grande vencedor da disputa, que encantou o júri ao apresentar moldes em 3D que recriam com perfeição órgãos do corpo humano – que inclusive sangram –, permitindo que cirurgiões ensaiem as cirurgias com antecedência e reduzam o risco de erros.
No auditório principal, dia 9, alternaram-se conferencistas graúdos, de algumas das universidades mais bem conceituadas do planeta, que também tinham de obedecer à dinâmica peculiar do Falling Walls. Havia 15 minutos para cada apresentação e, perto de o tempo se esgotar, Claus Franz, um ator, a toda hora com um novo personagem ou truque, era responsável por, gentilmente, recolher o convidado falastrão. Promoveu um espetáculo à parte.
A interação entre humanos e robôs foi um tema frequente. Leila Takayama, da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, nos Estados Unidos, começou dando a real: não estamos nem perto daquele futuro imaginado pela ficção científica em filmes e desenhos animados, com criaturas metálicas capazes de substituir uma pessoa em tudo, principalmente para nos poupar esforço. Apesar dos big brains (grandes cérebros) envolvidos nesses projetos, a cientista, também pesquisadora do Google, fez um apelo: é preciso reduzir as altas expectativas.
— Os robôs fazem coisas fantásticas às vezes, mas muitas vezes eles falham. Divirta-se com eles, mas entenda que são sistemas robóticos, com suas limitações. Um robô não vai ser o seu melhor amigo. Não é o mesmo tipo de inteligência que você tem. E está tudo bem. Podemos combiná-las para fazer coisas juntos — disse Leila, mostrando em vídeo um resumo dos meses em que uma equipe tentou fazer com que um robô conseguisse pegar a maçaneta de uma porta e abri-la. — Há muita autonomia, mas também existe um cara num laptop que sempre diz o que fazer e quando fazer.
A pesquisadora convocou profissionais de outras áreas, como artes, design e ciências sociais, para um dos maiores desafios do setor: conseguir que as máquinas manifestem emoções. Um exemplo rápido ali mesmo no palco: ela pediu que um robô lhe alcançasse uma bergamota. A criatura – uma estrutura branca sinuosa com uma pinça na extremidade – executou a tarefa corretamente.
— Perfeito! Bom trabalho — elogiou Leila. — Podemos tentar, quem sabe, pegar aquela pera?
Não deu certo, o robô errou a fruta e abaixou o que seria sua cabeça, simulando a postura humana de abatimento para aparentar tristeza pelo fracasso. A plateia se compadeceu, mas riu.
— Viram como é a sensação? Ele não precisa ser como um humano, mas sabemos que está triste. Ele está demonstrando estar atento, sabe que você está aí. Robôs precisam de habilidades sociais para sobreviver em um ambiente humano, e não mais apenas em uma fábrica.
Contra o desperdício, pró natureza
Incisivo, o apelo pela preservação do ambiente e da biodiversidade orientou as apresentações de Steve Evans, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e de Gerardo Ceballos, da Universidade Nacional Autônoma do México. Evans é um obcecado pela eficiência. Enquanto colegas seus se dedicam a estudos sobre a mudança climática e à construção de prédios sustentáveis, ele ataca, em nome de um planeta mais ecologicamente correto, em outra frente: transita pelo chão de fábricas para tornar os processos produtivos menos impactantes para a natureza com a tecnologia disponível hoje.
— Vou começar pedindo desculpas por estar trazendo o assunto mais chato para o Falling Walls. É importante, mas é chato. Precisamos derrubar as barreiras da ineficiência. Espero que, quando eu terminar aqui, vocês digam: “Continua sendo chato, é importante e estou muito feliz por saber que há pessoas trabalhando nisso, mas não sou eu” — gracejou o britânico no início de sua explanação. — Como podemos fazer com que as pessoas parem de fazer coisas estúpidas? — provocou.
Evans queria saber dos participantes o que os deixam brabos. Listou três números que o tiram do sério: 50% da comida de origem animal não são consumidos; apenas 10% do material processado chegam ao consumidor; somente 27% da capacidade dos caminhões são utilizados no Reino Unido.
— Vocês sabiam que são usados até 10 mil litros de água para fazer um par de calças jeans? É muita água, gente. Uma fábrica com a qual trabalho conseguiu reduzir essa quantidade para 60 litros. De 10 mil para 60! Por que não estamos fazendo isso em todas as fábricas? Eu quero que vocês fiquem brabos! Temos tecnologia suficiente para ser sustentáveis hoje.
É preciso ver o desperdício para evitá-lo, repetiu Evans. Cada participante da conferência descobriu ali, durante sua palestra, para que servia uma pequena tira de tecido amarrada nas credenciais distribuídas pela organização. Tratava-se de um retalho que sobra na produção de um fabricante de meias. Mostrou uma bacia cheia das argolinhas de pano e convidou os interessados a levarem para casa quantas quisessem, dando-lhes uma finalidade mais digna do que a inutilidade absoluta.
— Usem isso para lembrá-los de serem eficientes. Temos caminhado cegamente, ao longo de nossas vidas, pensando que as coisas são eficientes. Se não enxergarmos o desperdício, não mudaremos. Quando comprar algo em uma loja, leve o produto (para casa) e deixe a embalagem. Eles vão mudar de comportamento. Para os empreendedores nesta sala: transformem o lixo em dinheiro — conclamou Evans. — O mundo vai agradecer a vocês por isso.
Gerardo Ceballos é autor de um estudo pioneiro sobre o status de preservação dos mamíferos em escala global. Ele desembarcou na capital alemã para dar um alerta dramático: estamos prestes a testemunhar a sexta extinção em massa de espécies na história da Terra. A catástrofe está sendo provocada pela destruição dos hábitats perpetrada pelos humanos, pela caça ilegal, pela poluição e pela mudança climática.
— Estamos perdendo uma em 5 mil espécies a cada cem anos. O que descobrimos é que essas espécies que perdemos em cem anos deveriam ter sido perdidas em 10 mil anos. Esse é o problema. É uma velocidade sem precedentes. Isso tem implicações importantes para a diversidade do planeta e para nós — destacou o pesquisador mexicano.
Um exemplo assustador da agressão contra a natureza: a cada 15 minutos, contou Ceballos, um elefante é morto ilegalmente na África. A esse ritmo, caso nada seja feito para conter e punir a sanha dos assassinos, não restará um elefante sequer no mundo no ano de 2030. O mesmo estado de calamidade vale para rinocerontes e girafas.
— Conseguimos muitos benefícios de plantas e animais. Temos que parar de ser espectadores. Este é provavelmente um dos maiores problemas da história da humanidade. O que fazemos determina quantas espécies serão salvas. O mundo não será o mesmo se as perdermos. Ao salvá-las, estamos salvando a nós mesmos — apelou.
Para não marcar sua palestra apenas pelas más notícias, o pesquisador compartilhou um de seus maiores orgulhos com a plateia:
— Nos últimos 10 anos, mais de 600 espécies de novos mamíferos foram descobertas. Meu grupo de pesquisa descobriu 17, e para mim é como ter ganhado na loteria 17 vezes.
Como construir um cérebro humano?
Em um pequeno prato, Paola Arlotta, da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, mostrou algo revolucionário: pedaços de tecido cerebral humano em 3D desenvolvidos a partir de células-tronco.
— Em algum lugar lá dentro de nosso cérebro, entre milhões e milhões de células, bilhões de conexões, sinapses, pulsos elétricos, estamos nós. Nossa personalidade, nossas emoções, nossos sentimentos, nossos pensamentos, nossas escolhas. Não surpreende pensar que a humanidade tem estado obcecada em entender o cérebro há tanto tempo. Do que é feito, como funciona, como a mente emerge desses bilhões de conexões? Essa grande ambição permanece incompleta. Por que não conseguimos entender nosso próprio cérebro? — disse a neurocientista italiana.
O cérebro se desenvolve enquanto crescemos no útero materno. Cientistas estudam o cérebro sem vê-lo. É comum analisar o cérebro de ratos em laboratórios, o que é bem diferente de observar o cérebro de seres humanos. Nosso cérebro, sublinhou Paola, é um produto da história muito particular da nossa evolução. Dedicada à investigação de doenças psiquiátricas e neurodegenerativas, a pesquisadora justificou que a ciência não trata e não cura muita dessas enfermidades porque ainda não é capaz de compreendê-las desde suas características mais microscópicas. Um cientista não consegue afirmar “aquele gene é diferente”, “aquela parte específica de DNA é diferente”.
— Talvez, e digo que apenas talvez, precisemos construir o cérebro humano — anunciou Paola. — É mais fácil falar do que fazer. Quais foram as coisas mais complexas que os humanos já construíram? Um arranha-céu, um computador?
O que é necessário para construir um cérebro humano? Nosso cérebro foi construído enquanto éramos embriões dentro de nossas mães. Leva nove meses de gestação para construir o cérebro de um bebê. Depois aquele bebê vira uma criança, um adolescente... e todo pai de adolescente sabe que aquele cérebro não está terminado (risos). Estará em alguns anos. Depois de milhões de anos de evolução, a natureza leva 20 anos para construir um cérebro. Então, o que fazer agora?
Eis a importância dos minúsculos organoides dentro do pratinho. São réplicas primitivas, pontuou Paola, mas ao mesmo tempo complexas o suficiente para que permitam aos cientistas começar a questionar a origem do órgão. Como se forma? O que contém? O que dá errado quando desenvolvemos uma doença? Hoje é possível fabricar amostras do cérebro de qualquer pessoa a partir de uma amostra de sangue. Se essa porção foi coletada de um paciente esquizofrênico, cada célula dentro desse organoide carrega o genoma desse indivíduo. Com o genoma que traz uma variação da esquizofrenia, o pesquisador pode se questionar: que tipo de células são afetadas no cérebro de uma pessoa com esquizofrenia? Que tipo de moléculas estão desreguladas no cérebro? Hoje, ainda não se conhece a resposta para essas perguntas.
— Mas podemos olhar para os organoides que vieram dessas células e carregam o genoma desse paciente que estamos tentando entender. Este é um exemplo de um muro caindo na nossa área. Podemos fazer um cérebro e colocá-lo em um pratinho — exultou a estudiosa, que já reflete sobre as implicações futuras referentes ao poder que esse grande passo representa. — Temos que pensar nas nossas responsabilidades. Temos agora uma oportunidade para saber mais sobre as doenças e para o desenvolvimento de novas drogas. O que devemos fazer? Não conseguíamos fazer isso ontem, podemos fazer isso hoje. A hora é agora.
Memórias podem ser modificadas
Daniela Schiller, nascida em Israel e radicada nos Estados Unidos, também dedicou seus 15 minutos à exposição de avanços na área da neurociência. Celebrada por uma série de pesquisas que derrubaram a ideia generalizada de que a memória é imutável, a pesquisadora e professora da Escola Icahn de Medicina, da rede de hospitais Monte Sinai, em Nova York, falou sobre a possibilidade de que emoções negativas, ligadas a episódios tristes ou traumáticos, podem ser desconectadas das memórias associadas a eles, permitindo que a pessoa fique em paz com seu passado apesar dessas lembranças dolorosas. Nossa memória, segundo Daniela, é criada e recriada inúmeras vezes ao longo da vida, dependendo de quem somos no momento em que recordamos determinados fatos.
— Costumava-se pensar que o processo de consolidação da memória ocorria apenas uma vez, quando a memória era formada. Mas, nas últimas duas décadas, algo incrível aconteceu: agora entendemos que esse processo de consolidação pode acontecer a cada vez que recuperamos uma memória. A memória fica em um estado instável no cérebro e precisa ser armazenada de novo, reconsolidada. Acreditamos que isso nos permite atualizar a memória, incorporando informações do momento em que a reavemos. Então, em vez de dizer que nos lembramos de um evento, provavelmente é mais correto dizer que nos lembramos da última versão dele — explanou a conferencista.
Como exemplo, imagine dois amigos tentando rememorar um episódio no qual estavam presentes 10 anos atrás. Eles discordam em um ponto específico, e ambos julgam que o outro está sendo impreciso. É muito provável, explicou Daniela, que os dois estejam certos e também errados. Ou seja, nenhum deles está representando exatamente a situação original. Essa constatação é uma boa notícia, de acordo com a israelense.
— Se você tem uma memória negativa ou traumática, provavelmente podemos reativá-la, torná-la instável no cérebro e fazer com que tenha de ser armazenada de novo, mirando especificamente a emotividade, o que a tornaria menos dolorosa. Ou, como alternativa, podemos deixar que a reconsolidação aconteça e usar isso mais construtivamente, permitindo que experiências positivas sejam incorporadas a essa memória e conseguindo o mesmo resultado — detalhou Daniela, acrescentando que laboratórios pelo mundo vêm tentando pôr em prática terapias comportamentais baseadas nesse processo de reconsolidação.
Há também outras formas possíveis de navegação da memória. Em seu laboratório, Daniela conduziu um estudo em que os voluntários participavam de um jogo. Como se fossem personagens de uma história, progrediam conforme iam fazendo escolhas. Exemplo de uma situação da experiência: você encontra um ex-colega de colégio, e ele caminha em direção a você para abraçá-lo. Você opta por abraçá-lo ou lhe dar apenas um tapinha nas costas? Você vai adiante e continua optando por esta ou aquela ação. Segundo Daniela, é possível mapear a trajetória das relações de uma pessoa. Para cada interação, há uma coordenada, o que permite montar graficamente um espaço que representa o seu ambiente social, quantificando geometricamente seu comportamento e talvez até predizendo suas tendências. Na pesquisa, foi possível identificar as áreas do cérebro envolvidas nessa dinâmica.
— O GPS humano não está limitado ao espaço físico, ele também navega por espaços de memórias e áreas abstratas. O que esse experimento nos ensinou até agora? A memória não é uma gravação, é projetada biologicamente para ser modificada de forma constante. E isso é importante porque acreditamos que somos a soma das nossas memórias, pensamos que as memórias determinam quem somos. Mas, na verdade, nós determinamos nossas memórias. Elas não são uma gravação da história, podem ser modificadas. Há espaços de memória pelos quais podemos navegar, mas não somos escravos do nosso passado. Na verdade, somos os chefes dos nossos espaços de memória.
A densidade neuronal dos pombos
Entre tantos, outro convidado que cativou os inscritos no Falling Walls foi Onur Güntürkün, turco que vive na Alemanha que também se dedica ao desbravamento do cérebro. Professor de neurociência do comportamento, Onur proferiu uma palestra intrigante estabelecendo diferenças e relações entre as estruturas cerebrais de seres humanos e pássaros. Anos de pesquisa o tornaram um nome celebrado na comunidade científica por demonstrar como nosso pensamento evoluiu ao longo de milhões de anos, além de reforçar a esperança de que em breve será possível conhecer todos os princípios da cognição.
No telão, Onur indicou o córtex do cérebro humano. Pássaros tentam ser eficientes quando se trata de comportamento automatizado, explicou, mas eles não têm o córtex, crucial para o comportamento inteligente. Outro problema: o tamanho diminuto do cérebro dos pássaros, comparável ao da uva-passa que o palestrante segurou entre os dedos enquanto falava.
Os pombos, dotados de boa memória e capazes de reconhecer algumas palavras caso sejam treinados, tornaram possível que Onur desvendasse algo fantástico: eles têm, sim, tecido cortical, organizado de uma forma diferente quando comparada ao desenho do cérebro dos humanos (e ele esmaga uma fatia de torta com um garfo para bagunçar uma representação da estrutura em camadas, como a sobreposição dos sucessivos recheios de um bolo, característica da nossa espécie), mas que ainda não foi plenamente entendida. Descobriu-se também que o cérebro dos pombos tem uma densidade de neurônios seis vezes maior do que a nossa. Por conta dessa densidade mais elevada, os neurônios ficam mais perto uns dos outros, diminuindo a distância de comunicação entre eles.
— Gostaria de terminar com uma pergunta: os pássaros são mais inteligentes do que nós? Não, não são. Ainda que tenham uma maior densidade neuronal, temos muito, muito mais neurônios do que eles. Mas o que aconteceria se houvesse um grande cérebro de pássaro? — e Onur fez uma pausa antes de concluir, levando os presentes às gargalhadas: — Temos sorte de que não existe um.
*A repórter viajou como bolsista da Fundação Falling Walls