Conhecido hoje pelas tradições japonesas, o bairro da Liberdade, no centro da capital paulista, guarda em seu subsolo vestígios que revelam raízes culturais diferentes. Em um terreno que se estende da Rua dos Aflitos até a Rua Galvão Bueno, um trabalho arqueológico desenvolvido nos últimos três meses levou à descoberta de nove ossadas humanas. Na área, funcionou, de 1775 a 1858, a primeira necrópole de São Paulo, o Cemitério dos Aflitos. Durante a escavação, foram encontrados adornos como contas de vidro, característicos da cultura africana.
— Em um dos sepultamentos, a gente percebeu a presença de duas contas de vidro junto ao que seria o pescoço do esqueleto, contas azul-marinho, que tem uma simbologia na tradição religiosa africana, então a gente supõe que aquele indivíduo era um escravo, era um africano — explicou Lúcia Juliani, diretora técnica da empresa de consultoria arqueológica responsável pelas escavações.
A empresa foi contratada pela proprietária do terreno onde antes havia dois prédios que foram demolidos para que novos empreendimentos comerciais fossem erguidos. Com a obra, o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo e o Conselho Estadual de Defesa do Patrimônio Histórico orientaram para que fosse feito um levantamento na área, pois ela está dentro do envoltório de tombamento da Capela dos Aflitos na Liberdade.
Na primeira fase da pesquisa, o levantamento histórico apurou que esse cemitério era reservado a quem, de alguma forma, era marginalizado socialmente: escravos, presos, pobres, pessoas com doenças contagiosas, condenados à forca e sem família. A historiografia apontava ainda que os ossos haviam sido transferidos para o Cemitério da Consolação, quando da desativação do Cemitério dos Aflitos.
— A arqueologia provou que isso não é bem verdade. Talvez tenham removido uma parte, talvez não tenham removido nada — apontou Lúcia.
A diretora acrescenta que, em contato com arqueólogos do Rio de Janeiro, que trabalharam no Cemitério dos Pretos Novos do Rio de Janeiro, esse adorno de contas também foi encontrado.
— Essas contas eram usadas pra amarrar um camisão de algodão cru, que tinha um fio para amarrar no pescoço e provavelmente essa era a roupa que eles recebiam pra vestir — disse.
Lúcia destaca que a semelhança cultural ajuda a entender as origens das ossadas. Ela lembra que o uso de contas no Brasil colonial era próprio de pessoas com ascendência africana.
As pesquisas arqueológicas são acompanhadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que responde pela preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro. De acordo com a Lei 3.924 de 1961, todos os objetos arqueológicos são de propriedade da União. É para o instituto que a consultoria vai enviar relatórios dos estudos desenvolvidos no sítio arqueológico. A partir deles serão definidos os termos de construção na área. As ossadas, após análises, devem ser enviadas ao Centro de Arqueologia de São Paulo, órgão do governo municipal.
Com o material coletado não foi possível, por exemplo, identificar traços faciais por meio do crânio.
— Não dá pra saber se é branco, preto ou índio — apontou a pesquisadora.
Isso ocorreu pela deterioração do material que, por muito tempo, esteve sob o edifício. Mas será possível saber dados como idade e sexo, além de se observar anomalias como sinais de enforcamento, característicos da época. Lúcia destaca ainda as possibilidades de análise com o material genético recuperado em dentes humanos.
— Encontramos uma arcada dentária quase inteira. Dá para identificar etnia, uma série de coisas. É a identificação mais precisa que existe — apontou.
Lúcia aponta que, durante o trabalho de escavação, foi possível observar que parte das ossadas se estendia para baixo dos prédios ao lado.
— O cemitério continua. Nos prédios em que não foi feito subsolo, o solo arqueológico está preservado nos prédios vizinhos também — explicou.
A diretora relata que, na área dos prédios demolidos, a porção mais próxima da Rua dos Aflitos foi onde se encontraram os fósseis.
— O prédio que estava para a Galvão Bueno já tinha subsolo — informou.
Liberdade
A atual Praça da Liberdade já foi denominada Campo da Forca, local para aplicação de penas capitais no Brasil Colônia e Império, sendo a maioria dos condenados escravos fugitivos. Foi em 1858 que o Largo da Forca passou a se chamar Praça da Liberdade. Ali próximo ficava também o pelourinho, onde escravos eram açoitados. Os locais de punição foram escolhidos pela proximidade com o cemitério. Em julho deste ano, vereadores aprovaram o acréscimo de "Japão" ao nome da praça em homenagem aos 110 anos da imigração japonesa.
Lúcia destaca que a descoberta ajuda a remontar a história, conhecendo mais sobre a trajetória daqueles que ali foram enterrados. Além disso, reconhece e fortalece o movimento de descendentes de africanos que foram escravizados no Brasil.