No Uber é possível avaliar os motoristas por meio de notas, numa escala de estrelinhas, de uma a cinco. Essa é uma das vantagens do aplicativo de transporte individual. Mas os motoristas também podem qualificar seus passageiros pelo mesmo método. Apesar de essa ferramenta sempre existir no serviço, há cerca de duas semanas ela ganhou notoriedade.
Os motoristas do Uber têm acesso a nome e nota do usuário. A dinâmica, segundo a empresa, serve para que os dois não precisem passar por situações desagradáveis durante as viagens – motoristas com boas notas carregam passageiros com boas notas. Na chamada economia da reputação, o que você fez na viagem passada pode influenciar na rapidez com que você será atendido na seguinte corrida. Em uma comunidade no Facebook, um motorista desabafou: "Tive uma chamada de uma mulher com 4.2. É lógico que não aceitei".
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O conceito de receber avaliações e pontuações guia escolhas por produtos e serviços – você precisa de algo rapidamente e, ao mesmo tempo, necessita de um parâmetro para fazer uma escolha. Uma pontuação alta, na economia do compartilhamento, é fator decisivo para confiarmos em alguém para deixar nosso cachorro, pegar carona com um estranho ou dormir na casa de alguém que nunca vimos antes. Essas avaliações pessoais em certos contextos despertam curiosidade e até preocupação. No mês de outubro, de acordo com dados do Google, os termos "nota" e "Uber" atingiram o pico da popularidade.
Em março, a imprensa americana noticiou a chegada de um aplicativo cujo objetivo lembra o episódio da terceira temporada de Black Mirror, da Netflix, em que os cidadãos ganham nota de acordo com comportamento e personalidade. Um padrão de nota é exigido para alugar um carro ou garantir assento no avião. Notas abaixo da média têm o poder de transformar o status de alguém.
Por emojis, os outros dizem quem você é
O Peeple, fundado por Julia Cordray, americana de 35 anos, foi chamado de "aterrorizante" pelo jornal Washington Post. No aplicativo, cada um que entra pode dar um emoji feliz, triste ou neutro com um comentário para outra pessoa. Apenas quem escolhe participar do serviço pode ser avaliado e ninguém é anônimo, o que, segunda ela, faz com que a taxa de comentários positivos seja de 98%.
– Qualquer coisa relacionada à crescente economia do compartilhamento é um bom negócio. Precisamos permitir que os usuários possam confiar nos outros. Para novos participantes, que não têm reputações construídas ainda na internet, pode ser difícil vender ou comprar produtos – disse Julia em entrevista a ZH, referindo-se ao site Airbnb, que utiliza um sistema de reputação.
– Quando alguém quer fazer uma contratação, olha o perfil no Instagram e no Facebook e julga de forma subjetiva o que vê. Essa ferramenta seria uma maneira mais apropriada para carregar sua reputação – avalia.
Falta a subjetividade humana
Mas o que pesquisas mostram é que talvez sistemas que parecem objetivos não o são, na verdade – sejam eles guiados por pessoas ou por algoritmos, como o Klout, que mede, por base nas interações nas redes sociais, a influência daquela pessoa.
Nos sistemas mais simples, que apenas contabilizam uma média de notas, aquela pontuação depende da subjetividade humana. Mas deixar para as máquinas fazerem isso com uma coleta de dados já inseridos não seria também a solução perfeita, como diz o cientista da computação Alfredo Goldman, professor do Instituto de Matemática e Estatística da USP.
– Quando você ensina o computador a fazer algo, não entra o aspecto ético nisso. E não é culpa da máquina, mas porque ela não foi alimentada daquele jeito. Por isso, ainda é preciso a supervisão humana no que envolve serviços para as pessoas para verificar se não há alguma distorção. Sistemas de recomendação para produtos são muito complexos, garantem que mais coisas serão compradas, mas para pessoas, pode haver erros, como no caso do LinkedIn, que começou a oferecer mais vagas de executivos para homens – afirma Goldman.
China pretende avaliar cidadãos
Mas além de aplicativos, governos estudam usar sistemas como esse. De acordo com documentos publicados nos últimos dois anos, a China pretende avaliar cada cidadão por meio de notas. Essa pontuação serviria como uma maneira de construir um sistema de confiança para os cidadãos. A pontuação seria a base para a aprovação de crédito e influenciaria, por exemplo, uma seleção escolar.
– Estamos em uma esfera em que a competição é elemento chave. Precisamos saber nossa posição o tempo todo, mas temos o dever de fazer uma crítica disso, de entender o que está acontecendo. A própria defesa da privacidade é muito difícil, e todos estamos cada vez mais com a vida escancarada – opina o sociólogo Sergio Amadeu da Silveira, da Universidade Federal do ABC.
Cuidado para não se tornar refém das avaliações
Com a perda do emprego no ano passado, a ex-comissária de bordo Gisele Panzenhagen, 34 anos, precisava alugar seu apartamento. Ficou semanas à espera, até que resolveu fazer um anúncio no Airbnb. Pelo perfil, Gisele é uma anfitriã convidativa: tem 31 avaliações e todas cinco estrelas, o máximo que se pode ganhar. Esse sistema, para ela, é essencial. É o "cartão de visitas" a garantir que seu apartamento continue sendo alugado. A reputação de Gisele no site é transformada em negócios.
– Muita gente alugou meu apartamento pelos depoimentos, e eu me preocupo em ter uma nota boa, a limpeza sempre fui eu que fiz. Com a concorrência de hoje, é bom ter uma boa avaliação – diz.
O designer Felipe Tofani, 35 anos, libertou-se de um dos sistemas de avaliação que mais usava, o Klout. Ele checava o app do serviço constantemente para ver como estava a pontuação, chegou até a escrever um blog sobre isso.
– E o Klout nunca me dizia o que eu deveria fazer. Ele apenas me dizia que, de alguma forma muito superficial, eu falhei – desabafou.
Não era fácil entender o que motivava aquela diminuição de pontos no serviço ou como ele poderia melhorar. Tudo se tornou ainda mais assustador quando ele se deu conta de que essa pontuação é usada no mercado de trabalho e que o mecanismo tinha acesso às redes.
– Eu ficava de cara que ele sabia sobre as minhas coisas, tentava mudar meu comportamento para me deixar mais "influenciador". Ele falava que eu perdia um ponto, mas eu nem sabia o que fazia. É algo para transformar a pessoa em algo homogêneo como se fosse uma marca – diz.
Morando em Berlim, na Alemanha, ele divide com a mulher um blog sobre viagens. Para fazer parcerias com marcas, ele precisa enviar informações sobre sua presença nas redes sociais. Decidiu deixar de fora o número do Klout, mesmo que, nessa área, seja comum compartilhar a avaliação.
– Acho que, para pessoas, é um pouco estranho ter uma nota. Mas para produtos, uso muito, mesmo assim, não vou pelas estrelinhas, vou pelos comentários, que é quando alguém colocou um penso naquilo – diz.
Os impactos da "classificação" das pessoas
O impacto das avaliações do Uber já é objeto de estudo. Apresentado em conferência na Universidade de Oxford, uma pesquisa mostra que a percepção das pessoas sobre as nota não condiz com o que os motoristas precisam para continuar dirigindo com o Uber.
Liderada por um pesquisador do MIT, uma pesquisa deste ano mostra que, na cidade de Boston, passageiros com nomes que remeteriam à etnia teriam seus pedidos cancelados duas vezes mais do que outros usuários.
– Toda avaliação passa por um critério extremamente subjetivo. Os conceitos e os pré-conceitos que a pessoa tem influenciam. No caso do Uber, o motorista sabe que terá de fugir um pouco de suas características porque aquela avaliação é importante para ele. Como psicólogo, digo que você não pode fugir muito de suas características, se não isso é aprisionador– afirma Erick Itakura, pesquisador paulista de mídias.
- Entrevista Aleks Krotoski
PhD em Psicologia, a americana pesquisa e escreve sobre internet e interações humanas em veículos como The Guardian e apresenta a série da BBC Virtual Revolution, ganhadora de um Emmy.
"Buscamos esses tipos de notas por décadas, se não mais"
Sistemas online para alugar casas, encontrar motoristas ou empregos trabalham com avaliações individuais. Como você vê que isso pode impactar as pessoas?
A economia de avaliações transformou como as pessoas viajam e, certamente, essas curtidas e não curtidas explícitas podem ter impacto na maneira como as pessoas se veem. Como a maior parte dos fenômenos da internet, o que a tecnologia faz é tornar sistemas e processos psicológicos já existentes visíveis. Sempre avaliamos os outros, pelo que usam, pela aparência, pelo que fazem. Isso é simplesmente uma maneira mais ajustada para determinar se alguém é confiável. É um sistema imperfeito, mas mesmo assim é algo.
Quando avaliamos, o quão tendenciosos podemos ser? Se dou uma nota para um motorista do Uber, por exemplo.
Nossas avaliações podem ser tendenciosas por diversos fatores. Talvez acordamos com o pé esquerdo ou recebemos uma carta de amor. Se soubermos que a pessoa que estamos avaliando verá a nota, é provável que demos uma ainda mais alta.
Por que ficamos tão curiosos em saber nossas próprias notas?
É útil ter um método objetivo de avaliar como os outros nos veem. Buscamos esses tipos de notas por décadas, se não mais! Lembro de fazer testes de personalidade bobos em revistas de adolescentes que me diziam que tipo de pessoa eu era. Sei que esses testes são inconsistentes, mas a função é a mesma: eles nos dão perspectiva de como somos a partir do ponto de vista de outra pessoa. É claro que, dependendo do método, pode ser uma perspectiva falha.
Você acha que isso é benéfico para a sociedade?
Isso providencia uma medida de confiança em um meio que tem, de fato, nenhuma confiança. Não temos sequer uma experiência direta com muitas coisas e com pessoas que vemos na internet. Então, precisamos de heurística para nos dar uma sensação de veto, que não estamos dando um passo no escuro.
Na economia do compartilhamento, o que é confiança?
Offline, confiança tem base nas experiências pessoais diretas ou imediatas com alguém ou com alguma coisa. Online não temos essa oportunidade. A economia do compartilhamento almeja manter o mundo vasto e desconhecido da internet pequeno, como uma aldeia.