O alerta emitido pelo Centro Nacional para Crianças Desaparecidas e Exploradas, organização privada sem fins lucrativos com sede nos Estados Unidos, sobre a ocorrência de abusos praticados contra uma menina de 16 anos no litoral norte do Rio Grande do Sul despertou, em março deste ano, o olhar da Polícia Federal (PF) no RS e deu partida à investigação que culminou com o resgate de 10 adolescentes que seriam vítimas de estupros virtuais de um grupo criminoso em cinco Estados brasileiros.
Segundo a PF, as vítimas eram subjugadas e submetidas a situações de tortura física e psicológica. Elas eram mantidas sob o controle do grupo, motivado pela sensação de poder e controle empregado sobre as adolescentes. Os crimes cometidos em fóruns criados na plataforma de relacionamento Discord tiveram seu itinerário interrompido pela ação da Delegacia de Repressão a Crimes Cibernéticos da Superintendência da PF do Rio Grande do Sul.
— Foi um trabalho exaustivo de investigação, que tinha como objetivo principal dar fim a uma estrutura perversa de tortura e abusos. Quando o caso chegou ao nosso conhecimento, tornou-se uma prioridade absoluta — conta o delegado federal João Luiz Correa da Rocha.
Segundo o delegado federal, a investigação apontou que os criminosos abordavam as meninas mediante falsas propostas de começar uma amizade ou um relacionamento. Conforme apuração, elas eram induzidas a enviar ao aliciador imagens íntimas. Com as fotografias ou vídeos, os homens passavam a obrigar as vítimas a realizarem atos de autoflagelação, humilhação, exposição sexual, violência contra animais e veneração aos seus agressores. Caso não obedecessem, teriam suas imagens expostas publicamente.
— Em meu entendimento, estas meninas haviam sido transformadas em "escravas virtuais". Sofriam violação de sua intimidade. Eram obrigadas a práticas sexuais degradantes. Tinham horários determinados para de reportar aos criminosos. Viviam sob constante ameaça e tortura psicológica. Prestavam contas de sua rotina e precisam orar em adoração aos seus torturadores, que se autodenominavam deuses de suas vítimas — descreve o delegado.
A adolescente resgatada no Litoral Norte foi colocada sob cuidados clínicos e suporte psicológico estendido aos pais. A PF preserva qualquer informação que possa expor a menina. Também foram resgatadas e colocadas sob atendimento especializado meninas de São Paulo (cinco casos), Rio de Janeiro (uma), Santa Catarina (duas) e Espírito Santo (uma).
Violência apontada em provas revela perversidade
As imagens que compõem o acervo material de provas constituídas pela investigação são estarrecedoras. Oferecem a percepção da profundidade da violência praticada e sofrida.
Em alguns casos, as meninas eram instruídas a cortar com lâminas de metal os braços e as pernas, deixando cicatrizes e ferimentos visíveis para a satisfação do sadismo e da lascívia dos agressores. Uma das adolescentes resgatadas foi obrigada a desenhar, com navalha, o codinome e as iniciais de seu torturador nas coxas e no tórax, entre os seios.
Outra vítima teve de colocar seu hamster de estimação no forno de micro-ondas. Recebeu ordem de filmar a morte do bichinho. Não deveria apenas matá-lo, mas aquecer até "explodir" o corpo do animal.
A estrutura de perversidade começou a expirar quando a equipe liderada por Correa da Rocha identificou o integrante apontado como o responsável por apagar os indícios dos crimes. O suspeito, de 20 anos, foi preso em 20 de abril em Canoas, na Região Metropolitana.
Descobrimos que se tratava de um estudante do Ensino Médio, autodidata em informática, que havia programado um robô capaz de apagar os registros de diálogos e imagens resultantes das sessões de tortura e abusos.
JOÃO LUIZ CORREA DA ROCHA
Delegado da Polícia Federal
— Descobrimos que se tratava de um estudante do Ensino Médio, autodidata em informática, que havia programado um robô capaz de apagar os registros de diálogos e imagens resultantes das sessões de tortura e abusos. A investigação nos levou a uma residência em Canoas, onde o suspeito morava com a mãe. Para chegarmos ao número um do grupo, era necessário prender este indivíduo — relata o delegado federal.
Easy, como o investigado se identificava na plataforma, foi capturado após monitoramento e cerco realizados até que as autoridades tivessem a convicção de terem identificado o alvo das apurações. Os nomes dos investigados não foram divulgados pela PF.
No inquérito, que está em fase de conclusão, ele deverá ser indiciado por tortura, abuso sexual, lesão corporal e divulgação de pornografia infanto-juvenil. A perícia sobre equipamentos de informática apreendidos com o preso poderá indicar outros crimes por ele cometidos.
Prisão em Canoas conduziu investigação ao arquiteto da estrutura de violência
De posse dos equipamentos utilizados pelo suspeito autodenominado Easy, a Polícia Federal alcançou as pistas necessárias para identificar e organizar seu plano para captura do homem considerado o arquiteto do esquema de aliciamento e dominação das meninas.
— O investigado se reportava a um indivíduo cujo nome de código era Dexter. Os indícios apontavam que ele seria o principal operador desta rede, que pode envolver centenas de pessoas, entre autores da violência e consumidores das imagens — revela o delegado federal.
O levantamento de informações exigiu dos investigadores a aplicação de ferramentas de leitura e interpretação de dados, pois o investigado mantinha suas atividades na chamada deep web — ambiente da internet no qual registros de identificação são disfarçados para limitar a ação de usuários indesejados —, o que facilita a prática de delitos.
A apuração da Polícia Federal, no entanto, rompeu a redoma virtual onde o grupo atuava, revelando o possível esconderijo do suspeito no município de Passos, no interior de Minas Gerais.
— No mesmo dia tomamos voo até São Paulo e, de lá, partimos em automóvel alugado até Passos. Era necessário ter discrição para que o suspeito não desconfiasse e acabasse fugindo — lembra Correa da Rocha.
Em menos de 12 horas de diligência, os agentes haviam percorrido quase duas dezenas de endereços. O cerco estava articulado. Comércios de equipamentos de informática, mercados e restaurantes estavam incluídos no roteiro.
Suposto líder revela frieza e ostentação de poder em depoimento
Dexter, 20 anos, foi preso na tarde de 28 de abril, em uma casa desocupada, onde vivia. No local, havia apenas seu material de tecnologia, roupas e um colchão no chão de um cômodo vazio. Alegava ser estudante universitário do curso de Psicologia. Ele não tinha emprego e vivia afastado de familiares.
Em depoimento, conforme o delegado federal, Dexter relatou com detalhes a metodologia aplicada em seus atos e não teria demonstrado sensibilidade sobre as consequências deles decorrentes.
Um jovem seguro em suas falas, sem emoção. Disse que se sentia mais forte no mundo virtual do que na vida real. Afirmou que se sentia importante perante seus seguidores.
JOÃO LUIZ CORREA DA ROCHA
Delegado da Polícia Federal
— Frieza, nenhuma expressão de arrependimento. Um jovem seguro em suas falas, sem emoção. Disse que se sentia mais forte no mundo virtual do que na vida real. Afirmou que se sentia importante perante seus seguidores. Um avatar — analisa o delegado federal.
No inquérito, Dexter deverá ser indiciado por tortura, abuso sexual, lesão corporal, divulgação de pornografia infanto-juvenil, além de maus-tratos contra animais pelo caso do hamster.
Além das prisões efetuadas pela Polícia Federal gaúcha, outras investigações resultaram na apreensão de menores suspeitos de participação na rede de violência. De acordo com o delegado federal , são aguardadas perícias sobre dados digitais para individualizar condutas e, eventualmente, identificar mais participantes da rede criminosa.
O delegado aconselha que pais e responsáveis mantenham vigilância e empatia com seus filhos, com objetivo de prevenir a ocorrência deste tipo de situação. Ele recomenda que monitorem e orientem para que jamais sejam compartilhadas imagens íntimas e, tampouco, comecem relacionamentos de confiança com pessoas estranhas, as quais podem possuir propósitos maliciosos e identidade oculta por perfis falsos.
— É importante observar mudanças severas de comportamento, como tristeza prolongada e isolamento. Não é saudável para ninguém passar muitas horas na web em detrimento de amizades convencionais — conclui.
O que diz a Discord
Em nota enviada pela assessoria de imprensa, a Discord afirma estar empenhada em cooperar com as agências de aplicação da lei no Brasil. "Recentemente, nomeamos um representante para receber demandas judiciais relacionados à aplicação da lei no Brasil. Solicitações de aplicação da lei devem ser enviadas ao representante legal devidamente nomeado da Discord no Brasil", diz o texto. A nota prossegue informando que a Discord continuará respondendo a processos legais no Brasil de acordo com suas obrigações legais.
"Embora não possamos comentar sobre nenhuma investigação específica, até o momento, tomamos as seguintes medidas em relação a violações originadas no Brasil em nossa plataforma:
Nossa equipe forneceu informações cruciais que levaram à prisão de mais de 300 indivíduos vinculados a ataques planejados a escolas, impedindo que os ataques ocorressem.
Por meio de nossa atuação proativa no combate às ameaças à segurança infantil, 95% das ações contra os usuários foram tomadas antes de receber uma denúncia — isso está em linha com nosso compromisso de manter a plataforma mais segura no Brasil.
Isso inclui a remoção proativa de quase 98% dos servidores que hospedam CSAM (child safety abuse material) no Brasil nos últimos seis meses. Nos últimos seis meses, removemos proativamente mais de 12 mil usuários que traziam material nocivo para as comunidades brasileiras.
Enquanto continuamos a investir pesadamente em equipe especializada e tecnologia para detectar proativamente comportamentos nocivos, também contamos com moderadores e usuários do Discord para receber denúncias, que analisamos e investigamos de forma escalonada", argumenta a empresa.