Em grandes galpões, pedaços de tecidos e madeiras se transformam em móveis e estofados. Sacos plásticos de diversos tamanhos são reciclados, e chapas feitas com caixas de leite viram ecopontos. O cenário, que lembra o interior de uma fábrica, fica dentro do Complexo Prisional de Canoas, considerado referência em ressocialização de presos no Rio Grande do Sul. Cerca de 900 presos trabalham diariamente no local, seja pela remição de pena ou para aprender uma nova função, de olho em uma futura fonte de sustento fora das grades.
Nesta quinta-feira (27), GZH circulou pelo complexo, que engloba as penitenciárias estaduais de Canoas 2, 3 e 4. O local abriga 2.380 presos. Entre os que exercem atividade laboral, 700 atuam nas chamadas ligas (que são como grupos) internas não remuneradas, responsáveis por tarefas de cozinha geral, faxina, manutenção e outros setores. Outros 210 trabalham de forma remunerada, com contratos firmados com alguma das 14 empresas parceiras do local – há inclusive empresas que produzem somente com mão de obra prisional.
No caso da Eloah Nissi, que atua com móveis e estofados, o negócio é comandado por quem já conheceu o sistema de perto. Adriano Azeredo de Medeiros, 51 anos, cumpriu três anos de pena em regime fechado, nas casas prisionais em Osório e São Jerônimo, e mais seis no semiaberto. Quando terminou de cumprir a detenção, passou a trabalhar com estofados junto de um amigo. Pouco depois, comprou a empresa, que atualmente, tem 18 funcionários dentro do complexo prisional.
Toda fabricação da Eloah Nissi é feita na penitenciária, desde o tratamento da madeira até os acabamentos nos tecidos. O empresário acompanha de perto a produção e faz com que o mesmo apenado passe por todas as etapas de produção, para que se torne um "profissional mais completo".
No espaço, há apenados que cometeram diferentes tipos de crimes, mas Medeiros entende que a ressocialização tem de ser uma possibilidade para todos que buscam outras alternativas de futuro.
— Se a gente focar somente no crime cometido pela pessoa, podemos acabar descartando alguém que seria um ótimo profissional. Eu penso assim: a Justiça já condenou eles, o meu papel aqui é dar um trabalho, mostrar que há outro caminho. E para o preso estar aqui, trabalhando, passou por todo um processo, se adaptou, tem bom comportamento, então com certeza já repensou (o que fez), já é outra pessoa — analisa.
O empresário afirma que o retorno é satisfatório: somente cabeceiras, produz 110 ao dia. Há 12 anos no mercado, ele vende diretamente a lojistas de diferentes cidades do Estado e alguns do Uruguai. Mas há outro tipo de "conquista", até mais significativa, diz. Medeiros explica que um dos objetivos da empresa é direcionar os funcionários para alguma vaga de trabalho quando deixarem a penitenciária:
— Tenho dois homens que trabalharam aqui dentro comigo e hoje estão em prisão domiciliar, com tornozeleiras. Eu os contratei para fazer as entregas, conseguimos autorização para circularem no horário de trabalho. Um deles atua há mais de um ano nessa função. Também tenho ex-funcionários daqui que hoje são gerentes em empresas em Três Passos e até no Paraná. É muito bom a gente ver esse retorno.
O empresário conta ainda que vai todos os dias no espaço e consegue conversar e conhecer os apenados, o que ajuda a, depois, orientá-los para vagas que se encaixem nos perfis:
— Não troco o grupo aqui por um na rua. Quem vem aqui vem para trabalhar, não tem distração, são disciplinados, se agarram nessa oportunidade. Não fico um dia sem vir aqui, não é só meu trabalho, é minha paixão.
60 anos de costura
Em um canto do pavilhão, um dos apenados, com 70 anos, opera uma máquina de costura com rapidez. Ele trabalha há três anos no complexo e começou produzindo os uniformes usados no local. Mas a experiência vem de muito mais tempo:
— Trabalho desde os nove anos, fazia limpeza em uma empresa de costura, confecções. Eu morava nos fundos desse local, e quando os funcionários iam embora eu pegava alguma peça, costurava, cortava, montava, ia testando. Aprendi sozinho naquelas noites. Com 16, já era profissional, assinaram minha carteira. Já trabalhei com estofados para carros antigos, ônibus, móveis de todo tipo. Eu tinha uma estofaria em casa, que pretendo retomar assim que sair daqui. Acho que até o Natal eu saio.
As empresas que firmaram parceria com o governo do Estado para trabalhar no complexo atuam em diferentes ramos. Há confecções de uniformes, incluindo para hospitais e fardas, reciclagem de palets, lavanderia, fabricação de contêiner, móveis e estofados e reciclagem lixo eletrônico e plástico.
Oportunidade
De acordo com a Secretaria de Sistemas Penal e Socioeducativo (SSPS) do Estado, há diferentes ocupações para presos dentro do complexo. O grupo de 700 apenados que trabalha com afazeres internos tem o benefício da remição de pena. Eles atuam com cozinha geral, faxina e manutenção do espaço. Há ainda a remição de pena que pode ser obtida por meio de estudo – com turmas que oferecem até mesmo a alfabetização – e de leitura, em que cada livro lido corresponde a quatro dias de remição, por exemplo.
Normalmente, o preso começa o trabalho dentro da casa por essas tarefas internas. Ele passa também por avaliações psicológicas, precisa ter bom comportamento e alcançar outros critérios.
Depois, podem começar a atuar junto às empresas. Hoje, esse grupo é formado por 210 apenados dentro do complexo de Canoas. Eles recebem um salário mínimo — que costuma ser usado para complementar a renda da família — pelo serviço de 44 horas semanais previstas em contrato. O expediente começa por volta das 8h30min, com pausa para o almoço ao meio-dia, retomada às 13h30min e encerramento às 18h. Os finais de semana são de folga.
Loivo Calistrato Lima Machado lembra que, quando assumiu a direção da casa, há cinco anos, apenas uma empresa atuava no complexo. Ele afirma que o aumento desse número foi possível graças à ampliação do debate sobre ressocialização, nos últimos anos, e às políticas de divulgação pelo governo do Estado.
— O preso quer essa oportunidade, passa por todo um caminho para conseguir. Quando chega ao trabalho aqui, vi fazer de tudo para manter. Ele tira parte do sustento da família daqui, aprende um novo trabalho, se sente valorizado. Mora nas galerias junto de outros presos trabalhadores, vive em um local limpo e cuidado. Hoje, nossos procedimentos administrativos por indisciplina, nesse grupo, são quase zero.
Economia ao Estado
Para além da questão social, o secretário Luiz Henrique Viana, titular da SSPS, explica que o investimento em alternativas de trabalho para presos gera economia aos cofres do Estado.
— Sempre digo: esse preso vai voltar para a sociedade, vai sair às ruas em algum momento. Como queremos que seja esse retorno? Quanto mais ex-apenados trabalhando, mais segurança nas ruas. Se ele encontra um outro caminho, mudamos toda uma estrutura, diminuímos o índice de criminalidade, são menos mortes, menos roubos. Esse investimento reflete diretamente na nossa segurança.
Atualmente, a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) contabiliza 42.215 presos no RS, incluindo todos os tipos de regimes. Conforme dados de julho, há 12.636 pessoas privadas de liberdade trabalhando, sendo 11.827 homens e 809 mulheres.
Como atuam os presos trabalhadores no RS
- Remição (trabalho interno): 7.399
- Carteira de trabalho assinada: 598
- Autônomos: 1.710
- Termo de cooperação: 1.956 pessoas (atualmente, há 148 termos com empresas privadas e 79 com municípios)
- Artesanato: 974