A Justiça Militar suspendeu o Inquérito Policial Militar (IPM) que investigava a conduta de um oficial e três soldados que participaram de um teste com pistolas Glock sem as travas de segurança. Na avaliação, feita em 13 de outubro no Centro de Material Bélico da Brigada Militar, em Porto Alegre, a arma foi desclassificada do pregão para compra de 4.501 unidades. Uma gravação do teste fora do padrão foi distribuída em grupos de WhatsApp e nas redes sociais e virou motivo de chacota, o que gerou constrangimento para a cúpula da BM. A decisão de interromper a investigação é do desembargador militar Antonio Carlos Maciel Rodrigues e causou novo mal-estar na cúpula da corporação.
Por se tratar de um caso de repercussão, que envolve compra de armas de empresas multinacionais e dinheiro público, o comando-geral entende que a investigação não deve ser interrompida porque a BM precisa dar uma resposta à sociedade sobre o que aconteceu. A decisão da Justiça Militar suspende o inquérito militar, que é a fase inicial e administrativa da investigação, que ainda será submetida ao crivo do Ministério Público Militar para avaliar se cabe ou não denúncia. A BM entende que não se pode discutir o mérito do que aconteceu sem investigar o fato.
O desembargador Maciel Rodrigues acolheu o pedido do advogado Luiz Augusto de Mello Pires que representa os quatro policias que integravam a comissão de avaliação das armas em 13 de outubro. O principal argumento de Pires é de que a conduta dos policiais não constitui crime ou transgressão da disciplina militar.
Uma semana antes dos testes, em 6 de outubro, o advogado José Boanova Filho enviou petição sugerindo à Central de Licitações do Estado e à Brigada Militar que realizassem o testes das pistolas Glock sem as travas de segurança pois, segundo sua própria avaliação, a arma descumpria o item 2.2.1 do Termo de Referência o edital – que versa sobre o funcionamento da pistola por ação dupla.
Sobre o que foi feito a partir do pedido de Boanova Filho reside uma questão de interpretação. Em 9 de outubro, e-mail enviado pelo diretor do Departamento de Logística e Patrimônio da BM, tenente-coronel Cesar Adriano Patrício, encaminha o pedido do advogado ao Centro de Material Bélico "para fins de conhecimento e análise", tendo em vista os testes marcados para o dia 13 de outubro. Por fim, reforça: "encaminho para conhecimento e medidas que julgar cabíveis".
É algo histórico, abrimos centenas de inquéritos por ano por toda e qualquer conduta que tenha indício de crime ou transgressão. Nossa corregedoria é forte e atuante. Nosso trabalho precisa disso, um policial que se desvirtua é uma catástrofe para a corporação. Trabalhamos para cumprir a lei e abrimos inquérito para dar transparência.
CORONEL RODRIGO MOHR
Comandante-geral da BM
– Eu mandei para eles terem conhecimento que havia essa solicitação, mas adotaram o procedimento de fazer o teste sem me consultar. Não foi uma ordem para fazer o teste, foi um pedido de avaliação para o Centro de Material Bélico, que é técnico e entende de armamento – disse o tenente-coronel Patrício à GZH.
A BM entende que não deu a ordem para fazer os testes, mas a defesa sustenta que os policiais investigados atenderam o pedido do Departamento de Logística e Patrimônio:
– Não tem nada de adulteração de arma, eles cumpriram uma ordem, foi mandado que fizessem, que "tomassem as providências cabíveis", e eles tomaram, inclusive na presença dos representantes de todas as empresas, três deles da Glock _ diz o advogado.
A defesa do oficial e dos três soldados também pede que sejam informadas quais as condutas que serão investigadas e as provas que o IPM pretende produzir. O tenente-coronel responsável pela investigação argumenta, em uma troca de ofícios, que "serão investigados possíveis crimes previstos na Lei de Licitações, bem como de crimes contra a Administração Militar". Também frisa que a finalidade do IPM é buscar materialidade e autoria do crime militar, reunindo elementos necessários que possibilitem ao Ministério Público Militar o oferecimento ou não de denúncia. Para a defesa dos oficiais, esse argumento é insuficiente:
Se vai instaurar um inquérito, eu preciso saber o que eu fiz de errado e qual o fato é investigado. Qual o dispositivo que meu comportamento infringiu. Se a BM não me diz qual o fato que os policiais praticaram e de que maneira isso constitui infração penal, não pode existir IPM
LUIZ AUGUSTO DE MELLO PIRES
Advogado dos quatro policiais investigados
– Se vai instaurar um inquérito, eu preciso saber o que eu fiz de errado e qual o fato é investigado. Qual o dispositivo que meu comportamento infringiu. Se a BM não me diz qual o fato que os policiais praticaram e de que maneira isso constitui infração penal, não pode existir IPM – afirma Pires.
O IPM também investiga quem gravou e divulgou o vídeo do teste. A defesa alega que o oficial não autorizou qualquer filmagem da avaliação e que não percebeu que ela estava ocorrendo.
Por ora, a Justiça Militar suspendeu o trâmite do IPM e deu prazo para Brigada Militar prestar informações. A partir daí, será julgado o mérito da investigação. Na prática, é a Justiça Militar que vai decidir se a investigação prosseguirá ou não.
Na decisão, o desembargador militar admite que "é notório que o trancamento da ação penal representa uma espécie de julgamento antecipado". Porém, pondera que essa hipótese só poderá ser levantada quando "inexistir indícios da autoria ou prova da materialidade", ou se o argumento inicial da investigação não descrever conduta que caracteriza crime em tese.
Também argumenta no despacho que em uma avaliação preliminar indica a "inexistência de descrição mínima das condutas caracterizadoras de, em tese, fatos típicos ou transgressões disciplinares" que permitam aos policiais plena compreensão do teor da investigação, possibilitando o amplo direito de defesa. O desembargador também diz que há "deficiências na peça inaugural, uma vez que na Portaria de instauração do IPM, não há descrição dos fatos em apuração e não se vislumbra qual a conduta criminosa, minimante, encontra-se em investigação."
"Abrimos centenas de inquéritos por ano por toda e qualquer conduta que tenha indício de crime", diz comandante-geral
O comandante-geral da BM, coronel Rodrigo Mohr Picon, explica que a finalidade do inquérito é justamente averiguar se houve ou não crime. Reforça que, até o momento, ninguém é acusado de irregularidade e argumenta que não há como avaliar o que aconteceu já que a investigação foi suspensa:
– Eu não tenho como fazer avaliação sobre o que aconteceu, o inquérito tem essa função de avaliar e verificar o que diz cada uma das partes.
Dentro da BM, Mohr afirma que é comum abrir investigações para apurar qualquer tipo de indício de irregularidade:
– É algo histórico, abrimos centenas de inquéritos por ano por toda e qualquer conduta que tenha indício de crime ou transgressão. Nossa corregedoria é forte e atuante. Nosso trabalho precisa disso, um policial que se desvirtua é uma catástrofe para a corporação. Trabalhamos para cumprir a lei e abrimos inquérito para dar transparência. E nesse fato é necessário mostrar o que aconteceu, a sociedade gaúcha precisa saber para que, no mínimo, não aconteça de novo.
Nos dias 26, 27 e 28 de outubro, uma segunda avaliação das pistolas Glock, seguindo o anexo A do edital, foi executada e a arma foi aprovada. Um novo grupo, com cinco oficiais com curso de tiro e mais cinco armeiros da BM, capitaneou o teste. Acompanhadas por um representante da Glock, três armas foram testadas e cada uma delas deu 5 mil disparos. Após ter qualidade e segurança verificadas, a marca foi considerada vencedora do pregão. A Celic homologou a Glock como vencedora e o registro de preços foi publicado nesta quarta-feira (18) no Diário Oficial do Estado. A BM prevê a compra de 2 mil pistolas de forma imediata para substituir armas antigas em quartéis do Estado.
O que diz o advogado que sugeriu o teste
Em conversa com GZH, o advogado José Boanova Filho explicou que sugeriu a execução do teste sem as travas de segurança para conferir se a pistola Glock se enquadrava nas exigências feitas pelo item 2.2.1 do Termo de Referência do Edital. No entendimento dele, a arma não atende o requisito técnico referente a energia da arma quando as travas de segurança estão desabilitadas.
– Nenhuma arma do mundo vai passar nesse termo de referência, ele foi mal escrito e tira toda e qualquer pista (pistola?) do pregão. E com a Glock não é diferente. Acompanho essa concorrência desde a formulação do edital. Qualquer pistola será desclassificada porque nenhuma atende esse item específico.
Ainda que tenha sido feito após sua sugestão, Boanova avalia que o teste feito em 13 de outubro foi "mal executado e arcaico" pois, no seu entendimento, faltou transparência aos itens verificados na avaliação.
Colecionador de armas desde 1993, Boanova Filho é policial federal aposentado, engenheiro mecânico e advogado que já representou uma das empresas que participaram da concorrência – Beretta – em outras oportunidades. Neste pregão, ele afirma que não representa nenhuma empresa, apenas acompanha o processo.