Quando a Polícia Civil abriu uma turma de mulheres e se tornou a primeira das forças policiais do Rio Grande do Sul a admitir a presença feminina, em 1970, o regime ainda era militar, o adultério considerado crime e o divórcio não havia sido aprovado no Brasil. No dia 10 de agosto daquele ano, 41 mulheres assistiram à aula inaugural na então Escola de Polícia Civil, mais tarde transformada na Academia de Polícia (Acadepol).
Ao lado de outras colegas, a policial aposentada Maria Zaira Scherer, 74 anos, foi uma das pioneiras da turma que completa 50 anos em 2020. Ela trabalhava como professora municipal em Garibaldi, na Serra, e ficou sabendo através do rádio da oportunidade de ingressar na instituição. A comissária Zaira, como ficou conhecida na corporação, conta que a mudança de vida foi grande e que o curso ensinava desde técnicas de defesa pessoal até o andamento de um processo criminal.
— Achei muito interessante. Despertou em mim aquele desejo de trabalhar num órgão que visa a defesa das pessoas, da busca dos seus direitos, das coisas justas e verdadeiras. Era muito forte esse meu querer. Como na época não podia fazer uma faculdade de Direito, surgiu essa oportunidade e eu fiz para saber o que ia dar — relembra.
No curso, as mulheres ocupavam o cargo de investigadora de polícia. Elas representavam apenas 5% da turma. A comissária Zaira conta que, para grande parte da população, a atividade policial ainda era relacionada às características essencialmente masculinas.
— O avanço que houve com o passar dos anos foi fruto das conquistas, da dedicação e da prova de que deu certo o trabalho das mulheres na Polícia Civil. Em qualquer lugar era muito pouco o trabalho da mulher. Hoje, o serviço feminino está em todos os lugares, desde uma médica até uma caminhoneira.
A nomeação de Zaira como investigadora aconteceu no dia 20 de janeiro de 1971. Ela começou atuando na Delegacia de Furtos e Roubos, no Palácio da Polícia. Aposentada há 25 anos, a policial critica a falta de valorização dos colegas que atuam na linha de frente do combate à criminalidade. Cita, por exemplo, a desvalorização salarial e a falta de vínculo da Polícia Civil com a Brigada Militar como fatores que contribuíram para isso.
— Quantos policiais civis ou militares já morreram de graça nos últimos tempos? O medo sempre existe na atividade policial, só que o nosso dever e a coragem nos impulsionam. A preparação que tivemos, mais a nossa personalidade, faz com ele seja superado. Isso aconteceu várias vezes comigo — conta.
Coragem é um sentimento muito destacado por Zaira. Em fevereiro deste ano, ficou sabendo que uma faculdade de Garibaldi estava convidando a terceira idade para conhecer as opções de curso superior. Se matriculou no vestibular com prova única, foi aceita e hoje tem aulas online de Direito devido à pandemia.
— Hoje, para ingressar na Polícia Civil, precisa de um curso superior. Por dedicação exclusiva para o trabalho, acabei não me interessando em fazer faculdade. Depois de aposentada, muito menos ainda. Agora, estou revivendo os momentos que enfrentava, no dia a dia, as questões do Direito. Acho que estou me dando bem — diz.
No convívio pela tela do computador com os colegas e professores, Zaira compartilha vivências acumuladas ao longo dos 25 anos de profissão e dá conselhos para os possíveis futuros policias.
— Os colegas encontram nos meus depoimentos a experiência aliada a vontade de aprender deles. O conselho que sempre digo é que, se não tiver honestidade como policial, você pode estar no cargo mais superior, que a tua verdade vai ultrapassar o conhecimento. Um bom profissional tem que gostar das coisas certas, tem que viver defendendo um princípio de moral — defende.
Primeira mulher na chefia de Polícia
No ano passado, a Polícia Civil comemorou 177 anos e, pela primeira vez, uma mulher sentou-se na cadeira de chefe da instituição no Rio Grande do Sul. A delegada Nadine Tagliari Farias Anflor atua na profissão há mais de 15 anos e aceitou o convite do governador Eduardo Leite. Na opinião de Zaira, demorou muito para uma mulher assumir o principal posto da Polícia Civil:
— Quando nós entramos não tínhamos nada, essas conquistas foram feitas por nós. Se o nosso trabalho não tivesse dado certo, com certeza, hoje ainda não teríamos uma mulher na chefia. Fiquei muito satisfeita em saber que uma mulher chegou lá, mas ainda há muito para se fazer.
A delegada Nadine considera que o trabalho feito pelas primeiras mulheres foi fundamental para a conquista de espaço dentro da instituição. A chefe de polícia relembra, por exemplo, que as primeiras delegadas foram incorporadas somente na década de 1980.
— Foram elas que abriram esse caminho, não pelo fato de terem passado no concurso, mas por terem continuado a romper e enfrentar todos os desafios diários. O movimento feminista na década de 1970 exigia que homens não revistassem mulheres suspeitas. Elas encararam etapas e venceram um desafio maior: se manter dentro de uma instituição que talvez, no início, era muito machista — afirma Nadine.
Para a delegada, a inclusão das mulheres foi associada ao o papel de cuidar das pessoas.
— Tudo que era relacionado aos direitos das mulheres, das crianças e dos idosos, por exemplo, era encaminhado para que elas atendessem. As três primeiras aprovadas no concurso de delegado em 1988 foram as primeiras titulares das delegacias especializadas no atendimento à mulher, em Canoas, Porto Alegre e Caxias do Sul — relembra.
Nascida em Getúlio Vargas, na região norte do Estado, Nadine conta que saiu de casa aos 16 anos para estudar em Passo Fundo, onde concluiu o Ensino Médio, cursou Direito e foi em busca de uma vaga no serviço público. Passados um ano e meio na chefia de Polícia, ela se diz muito satisfeita ao poder representar as mulheres e os homens da instituição:
— Orgulho é a palavra que resume o meu sentimento. Observei, nos primeiros meses, que nós já temos uma Polícia Civil madura. Internamente, parece que não foi uma novidade eu assumir. Isso porque as mulheres já ocupavam cargos de chefe de investigação, chefe de cartório, diretoras de departamentos, entre outros.
O Sindicato dos Escrivães, Inspetores e Investigadores de Polícia do Rio Grande do Sul (Ugeirm) tem planos para, após a pandemia, reunir parte do grupo de mulheres da primeira turma e montar um documentário contando a história das pioneiras da Polícia Civil do Rio Grande do Sul.