Há um mês, Simone*, 36 anos, decidiu que a vida não podia seguir como estava. Vítima de repetidas agressões do companheiro, procurou a Delegacia da Mulher em Santa Cruz do Sul, município do Vale do Rio Pardo, onde mora, e pediu ajuda. Conseguiu uma medida protetiva, que proíbe o ex de se aproximar dela. Mãe, sem emprego fixo e morando de aluguel, dependia financeiramente de quem havia lhe ferido. Precisaria enfrentar um novo dilema: recomeçar.
É para mulheres como Simone que um projeto foi criado em parceria entre Polícia Civil, empresários e Fundação Gaúcha do Trabalho e Ação Social (FGTAs) do município. Na iniciativa, vítimas de violência doméstica recebem suporte para melhorar a autoestima e buscar emprego. Por meio de uma rede que envolve voluntários, são atendidas no salão de beleza, recebem doações de roupas, são auxiliadas na preparação de currículos e com dicas de como agir em uma na entrevista de trabalho.
Foi assim que Simone chegou a um salão no centro de Santa Cruz do Sul. Não sabia exatamente o que viria pela frente. Dias antes, havia recebido com surpresa o telefonema de uma policial da Delegacia da Mulher. Era um convite para fazer parte do projeto.
— Não é algo que a gente espera ouvir da polícia — conta à reportagem, que acompanharia a transformação.
Ela foi selecionada entre uma série de mulheres que procuram a polícia para denunciar agressões por parte dos companheiros. A ideia é auxiliar duas pessoas por mês. Desde que o projeto teve início, em maio, ela é a quinta participante. A rede de empresários que se habilitam a contribuir vem aumentando. Cabe aos policias fazer a triagem das vítimas que se encaixam no perfil da iniciativa.
— São mulheres que, muitas vezes, passaram a vida dependendo do marido, que vivem essa situação de violência e querem se libertar. Querem caminhar pelas próprias pernas. Nesse processo, a elevação da autoestima é fundamental. Caso deseje ir atrás de emprego, a mulher precisa estar em condição de igualdade com outros. É o que estamos tentando resgatar. Permitir que essa mulher se torne independente financeiramente e não volte a ser vítima — explica a delegada Lisandra de Castro de Carvalho, da Delegacia da Mulher de Santa Cruz do Sul.
Mãe de uma menina, Simone trabalha como diarista, mas dependia do companheiro para a maior parte dos gastos. Depois que rompeu a relação com a qual sofreu por cerca de dois anos, precisou abandonar a casa alugada, pois não tinha condições de arcar com o custo. Abrigou-se na residência de parentes. Quando chegou ao salão — primeira etapa, antes de seguir em busca de um novo emprego — não recordava a última vez que tinha permitido cuidar de si mesma.
— A autoestima está lá embaixo. A gente vai perdendo a vontade — confidencia.
Do outro lado da mesa de manicure está Aline Soares, 34 anos, a proprietária do salão que dedicou uma tarde para atender Simone.
— Sofri muito, mas consegui sair de um relacionamento abusivo. Quem me vê hoje não pensa que é a mesma pessoa. Por isso, quando soube deste projeto resolvi participar. Isso me motiva a querer que outras mulheres superem — relata.
Aos poucos, o local vai se tornando um espaço de confidências. Em poucas palavras, Simone resume as angústias:
— A gente muitas vezes não tem com quem falar. Não tem quem ouça. E aquilo continua. É muito difícil.
Disposta a ouvir, Aline segue a conversa. Fala dos filhos e de como batalhou para conseguir ter o próprio salão. Na hora de escolher a cor do esmalte, Simone titubeia e recebe um incentivo:
— Vermelho para unha curtinha assim não dá né?
— Claro que dá. Vermelho é sempre vermelho — aconselha Aline.
Com as unhas pintadas, a cliente sorri pela primeira vez desde o início do atendimento. Dali, segue para a próxima etapa. Aline lava os cabelos de Simone. Luna, uma gata arteira, passeia pelo salão. A proprietária do segue encorajando as mudanças:
— Acho que podíamos cortar um pouquinho.
Juntas, decidem reduzir um palmo do comprimento dos longos cabelos escuros. Aos poucos, a cabeleireira convence a modificar um pouco mais o corte. Por fim, escova os cabelos.
— Não sei quando foi a última vez que cuidei de mim — diz Simone, de penteado novo.
A última etapa da transformação é a maquiagem. Aline escolhe as cores com cuidado. É delicada nos gestos.
— Qual cor de batom?
— Clarinho.
— Pode ser esse rosa? — sugere.
Simone aceita experimentar a cor nova. A cabeleireira elogia os longos cílios da cliente. Ao fim de três horas de conselhos e cuidados, Simone se admira no espelho e sorri, enquanto afaga os cabelos. Aline observa o resultado e incentiva outra vez.
— É preciso se valorizar. Toda mulher é bonita. Só precisa de alguns cuidados — diz, poucos antes de as duas se abraçarem.
— Aprovado? — pergunto.
— Mais do que aprovado. Fazia tempo que eu não sorria. Era só choro. Agora quero conseguir um emprego e tocar minha vida. Esquecer as coisas ruins. Só olhar para a frente — projeta Simone.
Estamos ajudando a família inteira", diz delegada
A iniciativa em Santa Cruz do Sul é um desdobramento do projeto "Você é 10", que já vinha oferecendo desde o início do ano apoio para pessoas em busca de emprego. Em parceria com a Polícia Civil, a iniciativa passou a fazer parte dos serviços já oferecidos na Delegacia da Mulher do município. A delegada Lisandra defende que a ação serve de transformação não apenas para as mulheres.
— Uma mulher dependente economicamente do companheiro, muitas vezes se livra da violência, mas cai na miséria. Se essa mulher consegue emprego, recupera essa capacidade de se manter, por reflexo, estamos ajudando a família inteira — argumenta.
Professora de direitos humanos e sócia-fundadora da ONG Themis, Carmen Campos concorda que, assim como a violência impacta em toda a família, o fato de a mulher conseguir sair dela também reflete nos demais.
— A violência doméstica tem um custo social altíssimo. As crianças que convivem com essa realidade sofrem com aquilo e podem estar sujeitas a largar a escola ou mesmo se envolver em outras formas de violência. Quando uma mulher consegue sair dessa relação, ter um trabalho produtivo, isso cria outro ambiente para o desenvolvimento das crianças — explica Carmem.
Uma das iniciativas do projeto pretende encaminhar as vítimas para cursos profissionalizantes. A especialista acredita que a qualificação é importante para que as mulheres possam investir em atividades que permitam gerar renda mais elevada.
"É preciso que as mulheres tenham sustentabilidade, viabilidade econômica para que possam sair dessa relação violenta. Outra coisa importante é que essa iniciativa esteja articulada com outros serviços da rede. Possa, inclusive, contar com apoio de organizações de mulheres."
CARMEN CAMPOS
Sócia-fundadora da ONG Themis
— É importante não ficar somente naquelas atividades tradicionais. É preciso que gere renda suficiente para que ela não fique mais na dependência econômica do companheiro — explica Carmem.
A expectativa, segundo o empresário Julio Arruda, idealizador do projeto em Santa Cruz do Sul, é ampliar os serviços oferecidos, já que novos voluntários têm se apresentado. Também espera que a iniciativa possa ser replicada em outros municípios.
— Temos recebido contatos de muitos interessados em ajudar. É um projeto simples e sem custo. Mas que dá resultados — afirma Arruda.
O atendimento
A vítima procura a Polícia Civil para registrar a violência doméstica. No local, recebe orientação criminal e, nos casos necessários, é solicitada medida protetiva.
Na sequência, é orientada sobre a área cível, como processo de separação e seus direitos. Na delegacia, conta com apoio de uma psicóloga e pode participar de grupos de vítimas de violência.
Entre as mulheres, é feita uma seleção daquelas que se encaixam no perfil do programa. Ela é convidada a participar e, se aceitar, é encaminhada para o salão de beleza. Depois, é levada para a sede da FGTAS, onde recebe encaminhamentos para vagas e dicas para entrevistas de emprego.
Paralelo a essas ações, o trabalho investigativo da polícia nos casos de violência segue normalmente, com indiciamento de suspeitos e solicitações de prisões.
*O nome usado na reportagem é fictício