— Olha lá os urubus rodeando — aponta para o céu a telefonista Ketheleen Veiga, 29, enquanto espera a liberação do corpo do irmão, um dos 57 detentos mortos no Centro de Recuperação Regional de Altamira.
Guardados de forma improvisada em um caminhão frigorífico sob o inclemente sol amazônico, os corpos estão se decompondo em meio à dificuldade para identificar as vítimas. Foram 16 pessoas esquartejadas e 41 carbonizadas. Foi a maior matança no sistema prisional brasileiro desde o massacre do Carandiru, que ceifou 111 vidas em 1992.
Por falta de espaço, os cadáveres estão sendo exumados sob uma tenda improvisada e sem refrigeração no pátio do Centro de Perícias Científicas Renato Chaves, o equivalente paraense do IML, sob gestão estadual.
O mau cheiro vem principalmente quando os peritos abrem a porta do caminhão. Perto do meio-dia, o odor era tão forte que provocou uma debandada das dezenas de parentes concentrados na porta. Alguns vomitaram. Como paliativo, foram distribuídas máscaras cirúrgicas.
Ao mesmo tempo em que embrulha o estômago de quem espera, o cheiro atraiu três urubus, que pousaram no muro do centro de perícias. A vigília é atenuada por uma tenda montada na entrada do prédio e pela Igreja Universal do Reino de Deus, que distribui água, café, cachorro quente e conforto espiritual. Há também um posto de saúde da prefeitura.
O irmão de Veiga é um dos detentos esquartejados.
— De manhã, a minha tia entrou para reconhecer a cabeça. Agora, entrou para reconhecer o corpo — disse, por volta das 13h.
Um vídeo gravado com celular mostra o momento da decapitação. Nas imagens, ele aparece vivo e com um pano na boca no momento em que o seu pescoço é cortado. A família diz que não irá fazer velório por causa do estado do corpo. Outros parentes têm receio de fazer a cerimônia fúnebre com temor de serem atacados por uma das facções rivais.
De acordo com as investigações, as mortes foram provocadas por um ataque do Comando Classe A (CCA), facção local, contra membros do Comando Vermelho (CV), criado no Rio de Janeiro.
Dois peritos disseram à reportagem que o trabalho é lento devido ao estado dos corpos, liberados um a um. Até o meio tarde, apenas quatro corpos haviam sido liberados.
"Pergunta para as vítimas dos que morreram lá", diz Bolsonaro
Ao deixar o Palácio da Alvorada na manhã desta terça-feira (30), o presidente Jair Bolsonaro (PSL) não quis responder sobre o massacre.
— Pergunta para as vítimas dos que morreram lá o que eles acham, depois que eles responderem eu respondo a vocês — disse ao entrar no carro.
Esta foi a primeira vez que o presidente comentou o caso. Uma rebelião deixou 57 mortos em Altamira (PA) nesta segunda-feira (29).
No meio da manhã, o bispo emérito do Xingu, Dom Erwin Krautler, chegou ao prédio do IML. Um dos símbolos na defesa dos direitos humanos na região do Xingu, Dom Erwin confortou as famílias, e criticou a falta de segurança dentro e fora dos presídios em todo o estado.
— Nossa região é notícia negativa mais uma vez. Essa carnificina não poderia ter acontecido, nós não poderíamos ter permitido que a violência, esse descontrole chegasse a esse ponto, eu estou arrasado, as famílias estão destruídas, nossa cidade, nossa região, isso não poderia ter acontecido, até quando?
Presídio sem enfermaria, biblioteca, oficinas de trabalho ou salas de aula
Relatório do CNJ mostrou que a unidade tem condições classificadas como "péssimas". Além de superlotada — 343 pessoas cumpriam pena no local, mais que o dobro da sua capacidade, de 163 vagas —, inspeção do conselho detectou que "o quantitativo de agentes é reduzido frente ao número de internos custodiados". O CNJ também constatou que a penitenciária não tem bloqueador de celulares, enfermaria, biblioteca, oficinas de trabalho ou salas de aula.
O Pará, quarto estado mais violento do país, vem registrando o avanço das milícias, fenômeno que só encontra paralelo no Rio.
Reportagem recente da Folha de S. Paulo mostrou que em nenhum outro estado brasileiro organizações criminosas comandadas por policiais e ex-policiais estão tão organizadas, estruturadas e dominam áreas tão vastas.
Segundo investigações da Polícia Civil e do Ministério Público do Estado, os milicianos dominam o transporte alternativo em várias regiões, a venda de gás em diferentes favelas, a oferta de serviços de TV a cabo, a venda e transporte de produtos contrabandeados e serviços de segurança. Além disso, controlam parcela considerável do tráfico de drogas local, rivalizando com as facções criminosas.