Juiz desde 1990, Leoberto Narciso Brancher conheceu o conceito da justiça restaurativa durante um curso em São Paulo. Na época, trabalhava como juiz responsável pelas unidades da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase) em Porto Alegre e vivia um verdadeiro dilema: estava ali ou para educar ou para punir. A justiça restaurativa veio como resposta.
Em que situações sabe-se que a justiça restaurativa funciona?
Tem amplo espectro de aplicações. Antes de ser uma metodologia de solução de conflitos, é uma filosofia que permite uma nova maneira de pensar a questão da resolução de problemas e conflitos e de qualificar os relacionamentos. Permite que se abordem desde crimes graves até casos de pequenas desavenças do cotidiano.
As situações que são mais propícias são aquelas em que existe um relacionamento prévio ou consequente entre os envolvidos. Por exemplo, um homicídio onde o autor e a família dele morem na mesma região em que os parentes da vítima. Ao voltar na cadeia, esse cara vai ter de circular na frente da casa dos outros.
Colocar vítima e agressor frente a frente não pode piorar ainda mais o trauma vivido?
O círculo é um espaço estruturado, seguro e protegido. Elas (vítima e agressor) não ficam sozinhas, mas com outras pessoas.
A superação do trauma é uma das principais preocupações da justiça restaurativa. O encontro só vai acontecer após pré-avaliação das condições de as pessoas participarem e se isso será favorável para a vítima. Primeiro, o ofensor tem de se autoresponsabilizar, tem de assumir que produziu um dano, que praticou ofensa. Ninguém vai para o encontro para discutir se é culpado ou que não foi bem assim. Já em relação à vítima, também precisa participar de forma voluntária. Ela só vai aceitar se quiser, quase sempre porque busca esclarecimento.
As vítimas têm perguntas e, às vezes, a clareza pode gerar descarga da tensão traumática. Então, nesse sentido a participação da pessoa pode ser curativa. Mas tudo depende de uma boa avaliação, isso não é aplicado de forma indiscriminada.
E em casos de estupros?
Via de regra, não se aplica. (Os círculos) são menos recomendados para estupro, principalmente abuso sexual de crianças, e violência doméstica. São as áreas mais delicadas, de aplicações de uso muito restrito porque pode revitimizar. Normalmente, nas relações familiares, existe poder continuado. No caso da violência doméstica, você não pode garantir que o que acontecer ali no círculo seja sustentável na convivência das pessoas quando há essa continuidade. Na situação de violência sexual, é pela profundidade do trauma.
Não vou dizer que não se aplica, porque pode ter um pai condenado por abusar da filha e depois de quatro, cinco anos de cadeia, a filha, já jovem, quer conversar com ele. A pessoa olha de fora e diz: “Ah! vai colocar a vítima conversar com o ofensor”. Mas tem de olhar caso a caso, porque as pessoas podem querer. Na justiça tradicional, quem fala pelas pessoas é o juiz, o promotor e o advogado. O diferencial da justiça restaurativa é que a gente pergunta para as pessoas, questiona se elas querem falar. A gente não decide de antemão: você é vítima e não vai falar com o réu.
Como dá para medir a eficácia dos círculos de paz nas escolas?
Diria que pela melhoria do clima da convivência escolar, com turmas mais colaborativas, menos tumulto, professores menos adoecidos, redução do estresse, relacionamento mais cordial entre família e instituição e, naturalmente, redução na incidência de ocorrências nas escolas.
De onde surgiu o interesse do senhor em justiça restaurativa?
Fui juiz da Fase. Trabalhei com adolescentes infratores internos por 11 anos e tinha um grande dilema. Me perguntava se estava lá para educar ou para punir. Porque o sistema acabava fazendo as duas coisas. Mesmo dizendo que educava, ele (o sistema) era violento no tratamento. Achei na justiça restaurativa um ponto de equilíbrio entre a assistência, o cuidado e a proteção. Tudo isso com controle, limite e disciplina. Se você exerce a disciplina de maneira violenta, não está educando. Foi minha experiência como juiz que exigiu amadurecimento e encontrei com material bibliográfico e comecei a estudar. Foi aí que percebi que essa era a resposta para meu dilema. Até janeiro de 1999, nunca tinha ouvido falar. Em 2002, fiz o primeiro caso e, em 2005, a gente começou o projeto-piloto na Ajuris. Hoje, a justiça restaurativa já é uma política nacional.