Três mil oitocentos e setenta e um dias. Esse é o período entre 14 de maio de 2008, quando uma jovem, de 20 anos, foi estuprada durante assalto dentro de casa, em Lajeado, no Vale do Taquari, e a decisão inédita do Supremo Tribunal Federal (STF). Pela primeira vez, um brasileiro teve condenação anulada com base em prova genética. O DNA encontrado na cama da vítima pertencia a outro réu do processo.
Por 127 meses, Israel de Oliveira Pacheco, 30 anos, foi acusado do assalto e da violência sexual. Desde o dia em que foi levado até a Delegacia de Polícia, em Lajeado, negou o crime. Acabou reconhecido pela vítima. A jovem relatava que o autor era um homem magro, alto, moreno e com capuz vermelho.
— Sou parecido com o assaltante que me denunciou, então ela pode ter se enganado — disse o rapaz para ZH, em fevereiro de 2012.
Condenado inicialmente a 13 anos e nove meses, teve a pena reduzida para 11 anos e seis meses. Cumpriu pena no regime fechado, passou pelo semiaberto, em Arroio do Meio, e chegou à liberdade condicional, em junho do ano passado. A defesa recorreu, mas o Tribunal de Justiça manteve a condenação.
Nesta terça-feira, mais de 10 anos depois da prisão, ministros do Supremo levaram em conta o exame de DNA. Realizado em 2009, o laudo indica presença de material genético de outro homem na mancha de sangue na cama da vítima. Com isso, os magistrados anularam a sentença.
— No nosso sistema, muitas vezes a condenação é com base no relato. E, assim, Israel foi condenado. Essa decisão afastou uma condenação injusta em relação à pessoa que sempre alegou inocência. Ele nunca teve outra condenação — afirmou o defensor público Rafael Raphaelli.
O laudo do Instituto-Geral de Perícias (IGP) do Rio Grande do Sul aponta que o sangue pertencia a Jacson Luis da Silva, 30 anos, preso do regime semiaberto. No processo, Israel foi acusado pelo próprio Jacson como autor do estupro. Disse que Israel teria entrado na casa e ele teria ficado do lado de fora.
Com Jacson, foram apreendidos objetos roubados da casa da vítima. Ele acabou sendo condenado somente pela receptação e teve a pena convertida em prestação de serviços à comunidade. Por outro lado, Israel dizia que estava em uma festa no momento em que aconteceu o crime e negava participação.
Nada vai trazer o tempo perdido, o sofrimento dele. Teve um filho que não viu crescer. Ficou mais de 10 anos no sistema prisional por um crime que não cometeu.
RAFAEL RAPHAELLI
Defensor público
— Nada vai trazer o tempo perdido, o sofrimento dele. Teve um filho que não viu crescer. Ficou mais de 10 anos no sistema prisional por um crime que não cometeu. Que isso sirva de alerta para que não presuma a culpa das pessoas — afirma Raphaelli.
Após a decisão, a Academia Brasileira de Ciências Forenses se manifestou informando que se reuniu com o ministro Luiz Fux – último a votar na sessão do STF – e prestou informações para assegurar a confiabilidade da prova pericial.
“Um dos benefícios mais importantes da tecnologia de DNA é a não condenação de inocentes equivocadamente acusados”, afirmou o presidente João Carlos Ambrósio.
Em 2012, o jornalista Humberto Trezzi entrevistou homem enquanto ele cumpria pena e apresentou laudo do IGP que o absolveu.
O que diz o MP
Sobre a possibilidade de recorrer da decisão do STF, o Ministério Público do RS afirmou que só se manifestará após ser intimado. A Promotoria argumentou, no entanto, que a descrição dada pela vítima não é compatível com a de Jacson e sim com a de Israel, que foi reconhecido pela mulher como sendo o estuprador.
O MP entende que Jacson teria se machucado ao escapar da casa antes da chegada da vítima, o que não exclui a participação de Israel.
Sete passos do caso
Em 14 de maio de 2008, uma jovem e a mãe são atacadas dentro de casa, no bairro São Cristóvão, em Lajeado, por criminoso armado com faca e o rosto coberto pelo capuz de um casaco. A garota é estuprada. O criminoso escapa levando objetos da residência.
Duas semanas depois, policiais prendem Israel. O rapaz é reconhecido pela vitima como autor do estupro. A descrição feita por ela era compatível com a dele. Jacson é preso e aparece na investigação como o comparsa de Israel, que teria vendido os objetos roubados. Os dois se parecem fisicamente. Jacson também aponta Israel como o homem que teria invadido a casa.
Amostra de sangue coletada na cama em que o estuprador agrediu a jovem é usada em exame de DNA realizado pelo Instituto-Geral de Perícias (IGP). O resultado, em 2009, diz que Israel não é o autor do estupro.
Israel é condenado em 2009 a 13 anos e nove meses de reclusão e Jacson a seis anos e oito meses de reclusão por receptação. Em agosto de 2010, Jacson tem a pena reduzida para um ano de reclusão, substituída por prestação de serviço à comunidade. Está, atualmente, no regime semiaberto, em Lajeado, por outros crimes.
A defesa de Israel recorre, mas o Tribunal de Justiça confirmou a condenação, reduzida para 11 anos e seis meses. A decisão se embasa no reconhecimento e usa de forma equívoca como argumento o fato de o exame de DNA ter ”constatado que o material genético coletado no local pertence a Israel”. O teste, no entanto, afirmava ser possível “excluir que o material biológico no tecido da colcha pertença a Israel”.
-Em 2011, em decorrência da implementação dos bancos de perfis genéticos, adotada pelo Brasil a partir da parceria firmada com o FBI (a Polícia Federal dos EUA), o Instituto-Geral de Perícias do RS, com base no cruzamento de amostras inseridas no banco, verifica que o material encontrado pertencia a Jacson.
Em setembro de 2015, o Tribunal de Justiça do RS refaz o julgamento, mas mantém a condenação de Israel, por conta do reconhecimento feito pela vítima. A defesa recorre à instância superior. Na última terça-feira, a 1ª Turma do STF inocenta Israel por três votos a dois. O ministro Luiz Fux argumenta que a dúvida deve recair para a absolvição do réu. O voto acompanhou os do relator ministro Marco Aurélio e da ministra Rosa Weber.