Thuane Gonçalves da Cruz, 20 anos, e Rudimar Muller, 18, foram as últimas vítimas assassinadas com requinte de crueldade em Santa Catarina. Na madrugada de 21 de novembro, em Palhoça, o casal foi agredido com socos e pauladas. Depois, queimado ainda vivo. Tudo filmado e divulgado pela internet. Enquanto os jovens aparecem sendo torturados, uma música enaltece a facção criminosa local. As imagens, que não ficam atrás da violência de grupos terroristas em outras partes do globo, são compartilhadas rapidamente. O episódio mostra uma prática que ficou comum em Santa Catarina nos últimos anos: a publicidade dos crimes brutais.
O corpo de Rudimar foi encontrado carbonizado na manhã do dia 22. Já o da namorada, que estava desaparecido, foi encontrado na manhã deste sábado, 25. Familiares já lamentam a morte. Além da perda, imploram para que os vídeos não sejam compartilhados.
De acordo com uma amiga de infância de Thuane, a família precisou se mudar do bairro onde criou a menina, em Palhoça. Os pais chegaram a pensar em internar a filha em uma clínica desde que ela começou a namorar um jovem que teria envolvimento com o tráfico de drogas, mas acabaram desistindo de ir muito longe e foram para a Capital. Na Ilha, ela se envolveu com outro rapaz, suspeito de pertencer a uma facção. Criminosos de outra organização mandaram a garota terminar o relacionamento, o que não foi aceito.
“Dói tanto ver quando os pais avisam: ‘filha, não anda com fulano porque ele é assim e assado’. A gente retruca, às vezes até se revolta e diz que não sabem de nada, que estão errados e são chatos. Mas, na verdade, eles sempre têm razão. Acordar e receber a notícia de que a única filha teve um fim bruto é cruel. Ainda assistirem imagens, vídeos. Podem imaginar o tamanho da dor?”, questionou uma outra colega da vítima nas redes sociais.
A delegada responsável pelo caso, Raquel Freire, diz que as investigações seguem em sigilo, mas até o momento ninguém foi detido pelo crime. Porém, ela adianta:
— É o que eles (criminosos) almejam com isso (compartilhamento dos vídeos): comprovar poder e trazer o pânico. Esse conteúdo violento impacta as pessoas e a própria família da vítima. Pedimos encarecidamente que a população evite compartilhar, porque isso é atender ao desejo dos traficantes.
Vídeos gravados chegam a outros estados e países
Na contramão do apelo da delegada, usuários do WhatsApp em cidades como São Paulo, Goiânia, Maceió, Cochabamba, na Colômbia, e até Setúbal, em Portugal, tiveram acesso ao vídeo. Basta um minuto na página de Thuane no Facebook para observar internautas zombando da menina e pedindo as imagens.
A prática de filmar as execuções e disparar os vídeos nas redes está mais comum no Estado. Somente neste ano foram pelo menos seis casos. Logo no começo do ano, em março, dois homens mataram e decapitaram um jovem de 16 anos em Joinville. Em julho, criminosos filmaram a tortura e execução de um desafeto na comunidade do Papaquara, no norte da Ilha de SC. E dias antes do caso de Rudimar e Thuane, bandidos gravaram a decapitação de um homem usando uma pá, onde citam bairros da Grande Florianópolis que pretendem tomar e ameaçam que a facção vai dominar o Estado.
Enquanto as facções acirram a guerra pelos pontos de tráfico de drogas, as forças de segurança pública trabalham nos bastidores com os serviços de inteligência, utilizando interceptações telefônicas e se infiltrando nas comunidades para descobrir os cabeças das facções. Em meio a todo esse terror, a população fica de mãos atadas à espera de uma solução para um confronto que parece longe do fim.
Cicatrizes para familiares e quem compartilha
O médico psiquiatra Vinícius Brum Prá, vice-secretário da Associação Catarinense de Psiquiatria, explica que a busca por esse tipo de imagem é uma forma da pessoa testar os próprios limites de barbárie humana.
— Essa curiosidade mórbida é algo inerente ao ser humano e presente na história da humanidade. Desde as execuções na Idade Média ou em períodos de barbárie, essa curiosidade sempre foi despertada — explica.
Para o profissional, não faz bem para a saúde mental do indivíduo compartilhar esse tipo de conteúdo. Vinícius destaca ainda que, para um familiar que assiste a execução do ente querido, o trauma é eterno. Por isso é necessária ajuda profissional.
Não existe uma tipificação específica para o ato de compartilhar na internet vídeos de pessoas mortas ou sendo executadas. No entanto, para a advogada Gláucia Martinhago de Souza, especialista em Direito Civil e Processo Civil, não é necessário esperar por uma lei que penalize criminalmente essas atitudes, pois ela já existe.
Ela cita o artigo 212 do Código Penal, que trata sobre vilipêndio de cadáver. Profanar, desrespeitar, depreciar ou ultrajar o cadáver se enquadrada em vilipendiar. O mesmo vale para as cinzas ou ossada da vítima. A pena para este crime é de um a três anos de prisão e multa.
— Diversas atitudes dos usuários nas mídias sociais não são apenas socialmente reprováveis, mas juridicamente também. Precisamos entender que se vilipendiar é toda forma de desrespeito ao ser humano sem vida e a exposição de imagens de cadáveres nas redes sociais é uma forma de ultraje, tal conduta pode ser enquadrada no crime de vilipêndio a cadáver — defende.