Imagine um banco com pelo menos quatro grandes acionistas que definem o financiamento para uma grande obra. O projeto é desenvolvido dentro do próprio banco. E a perspectiva de retorno do investimento, estimado em pelo menos R$ 1 milhão é quase imediata.
Um plano nesse estilo, tendo o pavilhão B do Presídio Central como "banco financiador", é o que a Polícia Civil acredita que tenha dado início ao ousado projeto de fuga descoberto na última quarta-feira pelo Departamento Estadual de Investigações do Narcotráfico (Denarc). A investigação ainda é mantida sob sigilo, mas uma das linhas apuradas é de que, depois da fuga pelo túnel, pelo menos parte das lideranças que financiaram o projeto seguiria para o Paraguai.
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Nos últimos anos, a facção Os Manos acabou sendo alvo de pelo menos três ações da Polícia Civil e do Ministério Público justamente contra o braço financeiro da organização. Esse, acreditam alguns policiais, seria um dos motivos para a decisão de organizar uma fuga de líderes.
– Temos uma ideia da liderança que centralizou financeira e estrategicamente o plano a partir de uma espécie de consórcio entre diversas lideranças do mesmo grupo. Naturalmente, eles se beneficiariam com a fuga no final – diz o delegado Rafael Pereira.
Ainda está em fase inicial a investigação financeira do plano de fuga, que pretende delinear o rastro exato do dinheiro aplicado no projeto, mas a polícia crê que a fonte esteja em roubos a banco e de veículos, tráfico de drogas e lavagem de dinheiro em empresas de fachada.
Uma vez concluído o túnel, acredita o delegado, fugiriam primeiro os líderes da facção criminosa, que teriam financiado a obra. Em seguida, passaria o segundo escalão da organização, também com participação no "investimento".
Entre os chefes do bando sob investigação está Fabrício Santos da Silva, o Nenê, 34 anos (leia em infográfico acima). Nenê seria uma espécie de salvo conduto para que os criminosos do grupo chegassem ao Paraguai. Em 2013, foi preso pela Polícia Federal no aeroporto de Foz do Iguaçu, no Paraná, próximo da fronteira.
A presença do grupo criminoso em contato direto com fornecedores de drogas e armas no país vizinho, estimam investigadores, eliminaria intermediários e provavelmente fortaleceria esquemas como envio de carros roubados para o outro lado da fronteira.
Empresas "parceiras" são investigadas
Elaborado o plano de fuga na cadeia e levantado o dinheiro para isso, a execução exigia sigilo e muita confiança. O elo para garantir isso, acredita a polícia, foi preso na tarde de quarta-feira, em Sapucaia do Sul – ele não teve a identidade revelada.
– É uma pessoa de extrema confiança da principal liderança do grupo envolvido no plano de fuga. A partir dos monitoramentos, verificamos que ele nunca ficava muito tempo na casa usada para iniciar o túnel. E quando ia ao local, ficava na frente, sempre bastante desconfiado. Ele fazia os contatos com o mestre de obras e, pelo que apuramos até o momento, tinha posição hierarquicamente superior aos que trabalhavam na obra e de contato direto com quem realmente mandava no projeto – afirma o delegado Rafael Pereira.
Pelo menos duas empresas que forneceram materiais para a obra já foram rastreadas, a partir das apreensões de diversas notas fiscais. Elas serão investigadas para detectar o caminho do dinheiro que financiou o túnel. As empresas são do Vale do Sinos, berço da facção, e a suspeita da polícia é de que este fornecimento estivesse comprometido com o envolvimento dos supostos empresários com o grupo criminoso.
O Denarc ainda apura quando o plano foi elaborado. O que a polícia sabe é que a sua execução, na casa (leia mais na página 8) escolhida para dar início ao túnel, começou em dezembro.
Procurados pela reportagem, policiais que já investigaram a facção Os Manos em outras ocasiões acreditam que o grupo levantaria o valor estimado pelo Denarc – R$ 1 milhão – para a empreitada da fuga. No ano passado, quando a mulher de um dos líderes da facção foi sequestrada a mando de outro detento, eles levantaram recursos com arrecadação dos pontos de tráfico: conseguiram R$ 400 mil para o resgate.
Este mesmo criminoso é considerado um dos principais articuladores da fuga frustrada. Nos últimos dois anos, a facção foi alvo de grandes operações que revelaram justamente a organização e as finanças que sustentam o grupo criminoso (leia abaixo).
CERCO À QUADRILHA EM ETAPAS
Operação Kommunication – Desencadeada pelo Ministério Público, em fevereiro de 2015, revelou um esquema de mensalidades entre os integrantes da facção. Cada integrante deveria, a partir de um estatuto, contribuir com R$ 200 por mês. Coincidência ou não, o planejamento era juntar – somente com as mensalidades – R$ 1 milhão em um ano. A investigação apontou que a intenção era comprar armas com este fundo.
Operação Clivium – Desencadeada pela Delegacia de Regional de Gravataí em junho de 2015, ação terminou com mais de 123 presos, integrantes da facção Os Manos em todos os escalões. Revelou o crescimento dos irmãos Otto, conhecidos como Ladeiras, a partir do bairro Morada do Vale, em Gravataí, e em expansão no tráfico de drogas e roubos pela Região Metropolitana. Dois dos irmãos estão atualmente no Presídio Central. Já Vinícius Otto, considerado o líder do bando e um dos principais braços operacionais da facção, está na Pasc.
Operação Laranja Mecânica – Desencadeada pelo Denarc em outubro de 2015, revelou um esquema de pelo menos R$ 20 milhões em lavagem de dinheiro comandada pelo antigo braço financeiro da facção, Alexandre Goulart Madeira, o Xandi, 35 anos, que tinha a sua base no Condomínio Princesa Isabel, em Porto Alegre. A investigação mostrou que a facção estava aprimorando sua sistemática para lavar o dinheiro do crime.