Os recentes escândalos de corrupção escancaram um fato que a maioria dos políticos do país conhece há décadas: o Brasil é a república do caixa 2. Para promotores, advogados e representantes da classe política, a irrigação das campanhas com recursos não declarados tem origem em interesses tão ocultos quanto o dinheiro repassado às escondidas, e é estimulada por dificuldades de fiscalização e punições brandas.
Estimar a frequência das doações ilegais é um desafio em razão da dificuldade para comprová-las. Nos últimos dias, o vazamento de delações da Odebrecht apenas confirmou que é uma prática comum e milionária.
Um aplicativo lançado neste ano pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) fornece outras pistas sobre a influência das fortunas na disputa pelos cargos públicos. O programa, que permite o envio de denúncias anônimas de caixa 2, contabilizou 429 relatos em todo o país nas últimas eleições – dos quais 186 passaram por uma triagem inicial em busca de indícios mínimos.
– O caixa 2 geralmente ocorre entre quatro paredes e tem pouca materialidade. Por isso, costuma vir à tona quando alguém delata ou há uma gravação – afirma o presidente da OAB-RS, Ricardo Breier.
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O secretário estadual da Fazenda, Giovani Feltes, ampliou o debate sobre o tema ao afirmar a empresários de Carlos Barbosa que "anjo não se elege" – e deixou no ar a dúvida de que ele próprio tenha praticado. O empresário e ex-deputado federal Luis Roberto Ponte (PMDB) acrescenta que essa prática é tão antiga quanto a democracia brasileira. O empresário e ex-deputado federal Luís Roberto Ponte acrescenta que essa prática é tão antiga quanto a democracia brasileira.
– Isso sempre ocorreu. Mas nem sempre o doador pede algo em troca. Na maioria das vezes, ele só não quer aparecer vinculado a um candidato – afirma Ponte.
Para o ex-deputado, o anonimato evitaria o risco de retaliações por parte de outros candidatos. Mas o caixa 2 também serve para mascarar trocas de favores entre políticos e empresários – que esperam ser futuramente beneficiados em contratos e licitações pelo seu apadrinhado. No caso da Odebrecht, suspeita-se que a verba ajudava a aprovar leis de interesse da companhia no Congresso.
– O caixa 2 não serve apenas para repassar recursos não declarados. Pode envolver corrupção ou lavagem de dinheiro. É um vetor para outros crimes – sustenta o promotor de Justiça e coordenador do Gabinete Eleitoral do Ministério Público Estadual, Rodrigo Zilio.
A doação oculta é um instrumento, ainda, para manejar recursos que as empresas escondem da Receita.
– Há uma variedade enorme de meios para manter escondido esse dinheiro não declarado. Quanto maior a empresa, mais sofisticados são esses meios. Mas sempre é possível – observa um contador que prefere não ter o nome publicado.
Como o risco de punição sempre foi baixo, e as penas, brandas, muitos empresários e políticos optam pela contabilidade paralela.
– O caixa 2 existe porque não há fiscalização. Se houver um controle maior sobre as campanhas, vão ver que os candidatos gastam muito mais do que declaram – diz o advogado especialista em Direito Eleitoral Décio Itiberê.
Zilio argumenta que o cronograma eleitoral deixa pouco tempo para o trabalho de averiguação. A punição tímida também estimula a irregularidade: o caixa 2 costuma ser enquadrado no artigo 350 do Código Eleitoral, que prevê reclusão de um a cinco anos e multa.
– A pena não é condizente com esse tipo de crime, principalmente quando envolve recursos expressivos – opina o procurador regional eleitoral no Rio Grande do Sul pelo Ministério Público Federal, Marcelo Veiga Beckhausen.
Combate ao caixa 2 exige conjunto de medidas
A exemplo de uma doença complexa e difícil de curar, não há um remédio único capaz de eliminar a prática do caixa 2 do cotidiano político brasileiro. Para promotores, procuradores e advogados, é necessário um conjunto de medidas combinadas para esfriar a febre nacional por doações não contabilizadas.
O coquetel de ações antifraude inclui mudanças na legislação eleitoral e propostas de reforma no sistema político brasileiro. A dúvida é se quem foi eleito por meio do modelo atual tem interesse real em mudá-lo.
Para o empresário e ex-deputado federal Luís Roberto Ponte, o remédio mais eficaz contra esse tipo de irregularidade é uma reforma política que elimine a utilidade das fortunas na disputa. O voto distrital ou a votação em lista, segundo ele, seriam maneiras de baratear as campanhas a ponto de o financiamento privado não fazer mais sentido.
– Hoje, um candidato a deputado tem de viajar o Estado inteiro de norte a sul queimando tempo e gasolina. É uma aberração que seria eliminada com o voto distrital. Já o voto em lista evita que o candidato fique se acotovelando contra colegas que estão disputando os mesmos votos que ele – argumenta Ponte.
O promotor de Justiça Rodrigo Zilio, coordenador do Gabinete Eleitoral do Ministério Público Estadual, acredita que é possível avançar no combate às contribuições ilegais mesmo sob o atual formato de votação. Isso seria possível dando mais prazo para o MP apurar suspeitas ao longo do calendário eleitoral.
Hoje, promotores e procuradores precisam investigar casos suspeitos em até dois meses, aproximadamente, para terem tempo hábil de entrar com ações capazes de cassar o diploma dos eleitos envolvidos nesse tipo de crime.
– Só vai se resolver esse problema de modo mais adequado se começarmos a repensar prazos e colocar um calendário realista para a fiscalização dos gastos eleitorais – diz o promotor
Zilio também afirma que, quando um juiz desaprova as contas de um candidato, após receber e analisar os documentos de campanha, isso não gera qualquer impedimento prático automaticamente. É preciso entrar com uma ação para que se abra processo capaz de levar a sanção como a perda do mandato.
– A desaprovação das contas deveria causar algum impedimento ao candidato – opina Zilio.
O promotor também lembra que as normas atuais preveem a declaração das arrecadações a cada 72 horas e a apresentação de um relatório antecipado em setembro – o que facilitaria o acompanhamento das contas de campanha. Mas, como a lei não indica punições a quem descumprir esses itens, eles costumam ser ignorados.
Como é a engrenagem do caixa 2
A empresa
Hoje, como a legislação vetou a doação de pessoas jurídicas, o caixa 2 é o único recurso para repassar dinheiro a um candidato. Mesmo quando a lei ainda permitia, empresas optavam por não declarar o recurso por diferentes motivos. Alguns dos principais:
– Origem ilícita do dinheiro.
– Tentativa de esconder a relação com um determinado candidato de quem espera favores caso ele seja eleito, como vantagens em contratos e licitações.
– Tentativa de esconder apoio a um candidato ou partido para não despertar inconformidade em outro candidato ou partido, sob o temor de que poderiam prejudicar a empresa caso eleitos.
A doação
– Costuma ser feita diretamente a um candidato ou por meio de um intermediário, que distribui o dinheiro para um ou mais correligionários.
– Muitas vezes, para dificultar a fiscalização dos órgãos de controle, os pagamentos são feitos em dinheiro vivo – que sempre deixa menos rastros.
O candidato
O concorrente a um cargo político pode obter diferentes vantagens com o dinheiro não contabilizado:
– Pela norma atual, é a única forma de receber dinheiro de empresa.
– Mesmo pela legislação anterior, se a quantia fosse muito alta poderia configurar abuso de poder econômico. Assim, ao menos uma parte do recurso poderia ser encaminhada via caixa 2 para pagar serviços de alto custo como programas de TV.
– Ocultar a associação a alguma empresa que pretende beneficiar caso eleito.
A fiscalização
O caixa 2 sobrevive porque o sistema político o favorece, e a fiscalização é difícil. Algumas das principais dificuldades:
– O Ministério Público tem pouco tempo (que varia, em média, entre 45 dias e dois meses) para investigar e comprovar eventuais irregularidades a tempo de entrar com ação para cassar o mandato.
– É difícil obter provas para comprovar caixa 2. Quando é feito com dinheiro vivo, muitas vezes depende de delação ou gravação. Casos que exigem quebra de sigilo bancário, que dependem de decisão judicial, esbarram na falta de tempo para investigar.
Os prazos para apurar gastos eleitorais
1. O candidato tem até 30 dias após a eleição para apresentar suas contas. Quem passa para o segundo turno pode entregá-las até 20 dias depois da votação final.
2. O julgamento das contas na Justiça Eleitoral deve ocorrer até três dias antes da diplomação – cujo prazo final cai em 19 de dezembro.
3. Eventuais irregularidades precisam ser apontadas em ações encaminhadas à Justiça Eleitoral até 15 dias depois da diplomação dos eleitos.
– A norma que prevê declaração dos gastos de campanha a cada 72h via internet e prazo para entrega de relatório antecipado à Justiça Eleitoral não prevê sanções. Assim, essa prática, que poderia facilitar a fiscalização, é descumprida pela grande maioria dos candidatos.