Sentada no lastro da cama, Rita Ramos, 35 anos, rezou nas 17 horas em que esteve presa com o foragido do semiaberto que invadiu sua casa por volta das 11h30min de terça-feira passada e a manteve em cárcere privado no quarto da filha até as 4h15min do dia seguinte.
Nesse período, a auxiliar administrativa dividiu, ora amordaçada e vendada, ora com olhos livres, o espaço de 7,5m² com um desconhecido armado com faca, que consumia crack incessantemente. Surpreendida pelo apenado quando voltava da padaria, ela chegou a pensar que jamais sairia viva da residência onde mora há 10 anos, no bairro Santo Antônio, em Charqueadas.
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Condenado a quatro décadas de prisão por estuprar e assassinar a sobrinha de três anos em 2004 (o corpo da criança foi localizado pendurado pelo pescoço com a própria roupa em um matagal em Porto Alegre), Cesar dos Santos Vieira, 31 anos, transformou o quarto da casa de Rita em uma espécie de bunker para impedir a investida da polícia.
A fortaleza que ele achava ter construído com colchão, armários e mesa arrastados para a entrada do cômodo não evitou que ele próprio fosse convencido a se entregar após 17 horas de resistência. De dentro do quarto, argumentava com o negociador, posicionado do lado de fora da casa diante da janela basculante da cozinha. Entre os dois, uma parede e um amontoado de móveis.
A filha de Rita também foi feita refém por quatro horas. Conforme o delegado Marco Aurélio Schalmes, Vieira utilizava apenas o celular da vítima para conversar com o negociador e fingia manter contato com comparsas. O apenado alegou ter cometido o crime para conseguir transferência de presídio por conta de uma dívida com uma das principais facções do Estado.
Para o delegado, resta esclarecer por qual motivo manteve Rita em cárcere privado por tanto tempo. Vieira, que havia progredido para o regime semiaberto havia 9 meses, foi preso em flagrante, encaminhado ao Presídio de Montenegro, teve a prisão preventiva decretada e deve voltar para o regime fechado. Schalmes irá indiciá-lo por crimes como cárcere privado (com agravante de uma das vítimas ser menor de 18 anos) e ameaça.
– Deveria ser revista a legislação quanto à progressão para o regime semiaberto principalmente aos condenados pela prática de crimes hediondos – critica o delegado.
Em entrevista a ZH, Rita detalha as horas de aflição que passou, quatro delas ao lado da filha única de 6 anos.
Como tudo aconteceu?
Estava em casa. A janela do quarto estava aberta e encostei a porta. Fui na padaria comprar sacos de lixo. Eu, minha irmã (sobrinha) e a minha filha. Quando cheguei, abri a porta, larguei os sacos de lixo no chão e escutei um barulho no quarto. Quando cheguei na porta (do quarto), o homem já saltou gritando que era um assalto. E aí eu corri, peguei minha menina no colo, ela se urinou todinha e disse bem assim: "tio, não machuca a minha mãe. Eu já fiz xixi na minha roupa." E a partir dali, já foi fechando tudo, trancado a casa, pegando faca, me levando para o quartinho dela, trancando tudo e botando roupa no chão. Ele fumou drogas o tempo inteiro dentro do quarto. Queimou papel higiênico. Ele me amarrou, fechou meus olhos, me amordaçou com roupas que estavam no roupeiro.
Como foram as horas seguintes?
Ele só usava drogas e falava palavras não coerentes. Concordava com ele e em alguns momentos ficava quieta. Em outros, olhava para ele. Daí ele mandava eu não olhar. Dali a pouco, me desvendava. Quando ele vendou a minha filha, e eu também, fiquei com medo que fizesse alguma coisa de ruim para ela. Ele ofereceu, acho que era cigarro pra ela. Porque escutei ela dizer: "Tio, minha mãe não deixa eu fumar."
O que ele te falava?
Coisas nada coerentes. Ele falava que estava falando com os comparsas dele, mas não estava. Porque não tinha nenhum outro telefone. Era só o meu que ele estava usando para se comunicar com os policiais. Ele estava viajando. Não tinha dois celulares. Era só o meu. Ele me dizia que estava devendo muito dinheiro para uma facção e que ele iria entregar (soltar) a minha filha. Que eu não iria morrer. Daqui a pouco, dizia que não sabia mais se eu ia ficar viva ou não.
Ele estava com uma faca. Ele te machucou?
Ele encostava, mas não apertava. Era só para eu saber que ele estava com aquela faca ali.
Ele estava nervoso?
Muito.
O que você fazia?
Eu só rezava. Orei muito, muito, muito. Rezei o tempo todo. Pedi para Deus colocar na minha mente e na minha boca as palavras certas para não errar em nenhum momento porque a minha filha estava comigo.
O que passava pela sua cabeça?
Que iria morrer. Mas não imaginava que foi tanto tempo. Só vi que tinha passado bastante tempo quando estava escurecendo porque a gente estava sem água e sem luz. Daí a gente ficou no escuro e percebi que havia passado bastante tempo.
Teve medo de morrer?
Muito. Estou a base de remédio. Mas fiquei com mais medo de ele matar a minha filha.
Como foi se ver livre?
Quando vi que ele entregou a chave da casa para o policial na janela, que o policial abriu a porta e segurou a mão dele, pulei essa mesa (colocada perto da porta). Não sei de que maneira eu consegui pular essa mesa e sair correndo. Antes eu estava em pé, encostada na parede, com ele do meu lado.
Como foi a negociação com os policiais?
Foi muito demorada. Ele falava uma coisa, depois falava outra. Ele queria continuar no semiaberto, não queria voltar a ser preso. Dali a pouco queria um carro para fugir para Porto Alegre. O último pedido dele foi ir para a Pasc (Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas). Quando os policiais disseram que o documento já estava ok, foi quando ele entregou a chave (aos policiais) e eu consegui sair daqui com vida.
Ele estava drogado?
Estava usando crack dentro da minha casa. O quarto ficou uma imundice. A casa ficou entranhada.
Como está tua filha?
Está bem, indo na psicóloga. É que a ficha dela não caiu ainda.
Como ela se comportou?
Ficou o tempo toda quietinha do meu lado. A hora que ele disse que ela iria ser libertada, pedi para ele colocar ela do meu lado. Ele colocou. Disse para ela: "Tu vai sair. O tio vai mandar tu pela janela e tu vai." Ela respondeu: "Tá mãe, eu vou fazer o que tu está pedindo." Ela não chorou.
Como você se sente depois de tudo?
Nasci de novo. Eu e minha filha. Agradeço a Deus por não ter feito nada para ela. Minha filha é meu tudo. Agradeço as pessoas ali na rua. Todo mundo orando. Minhas irmãs o tempo todo comigo. Meu pai, a minha mãe, sabe? Não tenho palavras para agradecer o que fizeram por mim. Percebi que as pessoas gostam de mim, que sou amada, entendeu? E a minha filha estando comigo não tem explicação. Vou dormir, agradeço. Acordo, agradeço por estar viva.
Tem mais alguma coisa que você queria falar?
Estão dizendo que a minha filha foi estuprada. Isso não aconteceu. Isso é um absurdo. É uma mentira. Ninguém sabe a dor que estou passando por isso. Estou a base de remédios e ficam inventando essas coisas. Isso me dói. Vocês não sabem a dor que eu sinto. Desejo que ninguém passe o que eu passei.