– A partir de hoje não sou mais advogado.
Aos 32 anos, Rafael Guimarães desistiu da profissão logo em seu primeiro caso. Não era um processo qualquer: desde o início do ano, Rafael atuava como assistente de acusação, ao lado do Ministério Público, para tentar condenar Guilherme Antônio Nunes Zanoni, preso em flagrante por esfaquear seu pai, Oscar Vieira Guimarães Neto.
A revolta do advogado tem motivo: segunda-feira, perto de casa e do Fórum Central de Porto Alegre, Rafael cruzou na rua com o assassino confesso de seu pai, liberado do Presídio Central por um habeas corpus.
– Eu vi ele passando e não acreditei que era, porque sabia que ele estava preso. Passei reto. No fim da rua, virei pra trás e ele estava me olhando. Nesse momento tive certeza de que era ele e que também me reconheceu – lembra.
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Por dois votos a um, desembargadores do Tribunal de Justiça atenderam parcialmente o pedido da defesa de Zanoni. Para os magistrados, por ser advogado, o réu deveria ficar preso em uma sala com instalações e comodidades adequadas a alguém com Ensino Superior – chamada de "Sala de Estado Maior". Não existe um lugar assim em Porto Alegre, justificaram os desembargadores, que colocaram Zanoni em prisão domiciliar.
Na sexta, então, ele deixou o Presídio Central, onde estava desde a noite do crime, em 5 de novembro. Na segunda-feira, quando Rafael cruzou com ele, Zanoni havia ido ao fórum para fornecer seu endereço e assinar documentos em que se compromete a permanecer em casa até ser julgado, explica o advogado do réu, Rodrigo Grecelle Vares.
Como assistente de acusação, Rafael encontrou com o assassino de seu pai inúmeras vezes em audiências. Agora, sente-se impotente, diz ter medo de andar na rua, e perdeu a confiança na Justiça. Na manhã de terça-feira, Rafael fez o desabafo em que anunciou a renúncia à profissão em uma publicação no Facebook,
– Na verdade, eu e meu irmão também estamos presos, pra sempre. Presos à ideia de que nunca mais veremos nosso pai. Já o assassino, está a desfrutar do direito que lhe foi concedido: estar em casa com a família. Eu achei que era forte, mas desisto – finalizou o post (leia a íntegra no final da reportagem).
Um dia depois, a publicação somava 7,3 mil compartilhamentos e 17 mil curtidas. Apesar da repercussão, não mudou de ideia. Tampouco tem certeza do rumo que seguirá daqui pra frente:
– Estou desanimado, cansado, pensando seriamente em fazer outra coisa, pois Direito e Justiça são coisas diferentes. Sou músico há muitos anos, talvez siga nesse caminho. Mas não sei. Estou repensando minha vida.
Nesta quarta-feira, Rafael também deu entrevista à Rádio Gaucha. Ouça:
Entenda o caso
Oscar Vieira Guimarães Neto, 61 anos, era síndico do edifício Santa Eulália, na Avenida Desembargador André da Rocha, no centro de Porto Alegre. No início da noite de quinta-feira, 5 de novembro de 2015, foi morto a facadas pelo vizinho do apartamento em frente ao seu.
O zelador do condomínio ouviu gritos de Guimarães e foi até o apartamento dele. A Brigada Militar foi acionada e, quando os PMs entraram no imóvel, Guilherme Antônio Nunes Zanoni, então com 25 anos, estava ao lado da vítima, que agonizava no chão. O suspeito, então, foi preso em flagrante e encaminhado ao Presídio Central. A polícia apurou, à época, que ambos mantiveram discussões frequentes por dois anos.
O Ministério Público, com ajuda do filho e advogado Rafael Guimarães, denunciou Zanoni à Justiça por homicídio triplamente qualificado: motivo torpe, uso de recurso que dificultou a defesa da vítima e meio cruel.
No dia 1º de junho deste ano, a Justiça proferiu a sentença de pronúncia, determinando que o caso vá a júri, incluindo apenas duas qualificações, tendo afastado o meio cruel, por entender que não houve o estrangulamento da vítima.
No dia 14 deste mês, os desembargadores atenderem ao pedido da defesa e concederam a permissão para que o réu espere pelo julgamento em prisão domiciliar.
De acordo com o advogado de Zanoni, Rodrigo Grecelle Vares, o autor confessa o assassinato, mas alega que desferiu as facadas em legítima defesa, pois o síndico teria invadido o seu apartamento.
Gracelle vai recorrer à Justiça para que seu cliente seja julgado apenas por homicídio, excluindo todas as qualificações. Já o MP deve entrar com pedido para incluir novamente o motivo cruel para que Zanoni seja julgado pelas três qualificadoras.
Contraponto
Rodrigo Grecellé Vares, advogado de Guilherme Antônio Nunes Zanoni, afirmou que realizou o pedido de habeas corpus após verificar que seu cliente não estava em uma sala de Estado Maior, como garante o estatuto da OAB.
– Entrei com o pedido após verificar que o Guilherme estava preso em uma cela com ex-policiais e outros presos com apenas Ensino Médio – disse.
De acordo com Vares, o acusado estava na Rua Borges de Medeiros no dia de 18 de julho para se apresentar ao cartório onde corre o processo, pois, como pede a justiça, o detido que cumpre prisão domiciliar deve se apresentar à Justiça no primeiro dia útil após a saída do regime fechado. Ele foi solto no dia 15.
– Ele estava nas imediações da Borges de Medeiros naquele horário apenas em deslocamento ao Fórum Central para informar os dados de onde ele irá cumprir a prisão domiciliar – explicou.
O advogado de defesa também disse que o medo do filho da vítima não se justifica, pois seu cliente não vai cumprir a reclusão no local do crime. Ele vai residir em outro local e poderá sair de casa apenas em situações específicas e com a autorização da Justiça.
Leia a íntegra do desabafo de Rafael Guimarães:
A partir de hoje não sou mais advogado. Se precisarem de algum, não me procurem. Aliás, não procurem nenhum, principalmente se vocês forem acusados de assassinato, afinal a lei já vai te garantir liberdade e mais um monte de benefícios.
Eu achei que era forte.
Há 8 meses perdi meu pai da forma mais brutal que alguém pode imaginar. Precisei de muita força pra suportar a situação e de mais força ainda pra atuar, juntamente com o Ministério Público, no processo, como assistente de acusação. Foram diversas audiências cara a cara com o assassino, que, até então, estava recolhido no presídio central. O fato de ele estar preso amenizava a dor que eu sentia, que eu sinto. Fiz o que pude pra manter o assassino preso, por mais que eu não atue nessa área.
Ontem, saindo do meu trabalho, me deparo com quem na rua?
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul concedeu habeas corpus para que o assassino do meu pai (aquele que matou com golpes de faca, deixando meu pai agonizando até a morte, sem motivo algum) possa responder ao crime fora da cadeia.
Quem será a próxima vítima até que seja julgado daqui a vários anos?
Fico pensando no quanto eu estudei pra me tornar advogado, pra chegar agora e minha vida se encontrar nessa situação. Eu confesso que tenho vergonha da profissão que escolhi. Por isso, a partir de hoje, não me procurem mais nesse sentido. Eu peguei minha carteira da OAB há bem pouco tempo, mas já tenho vergonha de andar com isso.
O assassino está fora da cadeia. Repito: um assassino. Não é um ladrão de galinha, nem um ladrãozinho de carteira. É alguém acusado de homicídio triplamente qualificado e que confessou o crime. Vocês sabem o que é isso? Se não sabem, procurem ler do que se trata, porque como falei, eu não sou mais uma pessoa que pode falar sobre isso.
Eu me formei em Direito, mas não sei responder qual direito eu tenho. O assassino tem direito de estar com a família, respondendo ao processo em casa. Que direito eu tenho? Não me garantiram nenhum direito, nenhum. O único direito que eu tive foi o de enterrar meu pai.
O único que continua preso e sem direito a advogado é o meu pai. Habeas corpus nenhum tira ele de onde está. Ele nunca mais sairá do lugar onde foi colocado por essa pessoa que falei que está solto por aí.
Na verdade, eu e meu irmão também estamos presos, pra sempre. Presos à ideia de que nunca mais veremos nosso pai.
Já o assassino, está a desfrutar do direito que lhe foi concedido: estar em casa com a família.
Eu achei que era forte, mas desisto.