Mais uma vez, crianças foram vítimas do fogo cruzado entre adultos. Um menino de oito anos, portador de necessidades especiais, foi assassinado a golpes de faca pelo namorado da mãe. A irmã dele, uma menina de sete anos, está entre a vida e a morte no Hospital de Pronto Socorro em Porto Alegre. Caso sobreviva, o Rio Grande do Sul terá mais um órfão da violência doméstica.
A tragédia que aconteceu na Lomba do Pinheiro neste final de semana, possivelmente tenha sido impulsionada por um componente bastante comum em crimes passionais: a presença do álcool e da droga.
Em um acesso de fúria, Eliseu Leite dos Santos, 19 anos, teria atacado a facadas a companheira Evelise Machado, 38 anos, e os filhos dela. Apesar dos boatos entre vizinhos e familiares de que os dois brigassem vez ou outra, todos diziam que tais comportamentos não extrapolavam os desentendimentos corriqueiros de casais.
Na delegacia, nenhum registro de violência pregressa entre os dois. O que se comenta no bairro é que Santos costumava fazer uso de drogas, o que faz com que a polícia creia que ele estivesse sob efeito de entorpecentes no momento do crime.
No fim, o assassinato de Evelise se assemelha ao de outras tantas mulheres que abrigam o inimigo dentro de casa. E são muitos os casos. A estatística de 2013 tem se mostrado tão perversa quanto a do ano passado, com uma média de duas mulheres mortas no Rio Grande do Sul por semana.
Em comum, os sinais de desrespeito mútuo. Os dois se xingam. Ela apanha de vez em quando. Ou sempre. Os filhos observam. Se calam. Se traumatizam. Nem ela, nem os familiares, nem os vizinhos acreditam que aquela pode ser a última discussão, que pode ser fatal.
As cenas de violência passam a ser corriqueiras. E o que no começo inquietava vizinhos, depois passa a ser banal, cotidiano. Amortece. E é sempre tão difícil de saber como e porquê começa.
Lembro de uma longa conversa que tive no início do ano com o psiquiatra Luiz Carlos Illafont Coronel, quando estava escrevendo as matérias para o caderno Órfãos da Violência Doméstica, encartado em Zero Hora. Inconformada com a repetição de histórias de amor revertido em fúria, quis saber como a mulher poderia evitar que o seu relacionamento chegasse ao ponto de o homem desejar matá-la.
O médico respondeu que o primeiro passo é conhecer a família do pretendente, saber como os pais se relacionam. Boa parte do comportamento do filho é herdado do que viu da relação dos pais. Ele explicou que as drogas liberadoras, como álcool, cocaína, crack e maconha, representam fatores de risco, capazes de potencializar comportamentos agressivos, e lembrou que as pessoas estão cada vez mais carentes, ao ponto de adoecer de medo da solidão. Que em uma era em que as emoções são tão confusas, o ciúme vira até sinal de amor.
- Existe um percentual, patológico, dos amores, que acabam em tragédia porque eles não suportam não serem queridos - disse Luiz Coronel à época.
No caso de Evelise, não se sabe dos meandros da história, não se tem notícias de demonstrações públicas de ciúme por parte dele, não se sabe das manias dela. A verdade é que, apesar de pegar todo mundo de surpresa, os sinais de violência desabrocham no dia a dia. É preciso ficar atento aos sinais.
* A repórter é autora do caderno Órfãos da Violência Doméstica veiculado em Zero Hora do dia 28 de abril. A reportagem apurou que 99 mulheres foram assassinadas por crime passional, resultando em 157 órfãos, em 2012 no Rio Grande do Sul.
Confira página especial sobre o assunto com fotos, vídeos e depoimentos dos órfãos e de especialistas sobre como reverter o problema.