Cerca de 200 pessoas por mês procuram o Serviço de Imunologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre para tratamento de alergias ou por não ter anticorpos, pacientes chamados de imunodeficientes primários. O local, referência no Estado, conta com imunologistas clínicos e um laboratório específico para descoberta das alergias.
Uma das situações que têm chamado a atenção da equipe é o aumento dos casos de alergias alimentares – um fenômeno mundial e cuja explicação ainda é um desafio para a ciência.
— Alguma coisa mudou na alimentação, não se entende direito por que as pessoas começaram agora a manifestar essas alergias. Tivemos muito aqui no ambulatório pacientes com alergia à proteína do leite, por exemplo. Eu já vi uma pessoa que é alérgica ao gergelim, eu nunca tinha visto isso antes — afirma o chefe do setor, Luiz Fernando Job Jobim.
O médico alerta para os riscos das alergias, que podem causar choque anafilático, impedindo a pessoa de respirar e levando à morte.
— A pessoa toma um anti-inflamatório e tem uma reação, mas não consegue relacionar porque sempre tomou esse remédio e nunca passou mal, aí acaba colocando a culpa em outras coisas, principalmente em alimentos que eventualmente tenham sido consumidos no mesmo dia — diz o médico.
Novo cardápio, novos hábitos
Entre os grandes desafios de quem sofre de alergia alimentar, estão a mudança de hábitos, de cardápio e a aceitação pela sociedade. A servidora pública Elisabete Kehl Martins descobriu que era alérgica ao glúten (proteína encontrada em pães e massas) aos 58 anos, após sentir coceiras pelo corpo. Dois anos depois, ela prefere controlar a alimentação em casa para evitar a chamada contaminação cruzada.
— Praticamente 90% dos alimentos contêm glúten, inclusive aqueles que a gente achava que não tinha, como feijão e ervilha, porque a gente sabe que eles são embalados no mesmo equipamento de outros alimentos com glúten, e aí acaba contaminando. Eu e meu marido começamos a olhar os rótulos, é terrível tu comprares um alimento sem saber se podes ou não comer — diz Elisabete.
Enquanto alérgicos precisam excluir o alimento e seus derivados da dieta, intolerantes ao glúten ou à lactose ainda conseguem ingerir o produto em doses menores. Tudo isso precisa, por legislação, estar especificado nos rótulos dos alimentos, e a busca da informação é essencial para evitar a manifestação da alergia no corpo.
— Há rótulos que dizem não haver lactose na embalagem, e a gente vai olhar atrás no rótulo e aí diz que contém traços de leite. Quem é intolerante à lactose vai poder consumir, sem ter reação. Outros que são alérgicos não podem nem pensar em comer esse tipo de alimento — explica a nutricionista da Santa Casa de Porto Alegre, Marina Bristot.
Além da contaminação, também existe a chamada reação cruzada. É quando um paciente que é alérgico ao látex, por exemplo, não pode ingerir kiwi e banana. Isso acontece porque uma proteína de defesa expelida pelas árvores durante a extração da borracha, causadora da alergia ao látex, também está presente nas frutas. O sistema imunológico acaba reconhecendo as substâncias como iguais e reagindo de forma dolorosa.
— O que a gente tem de mais comum de reação cruzada são os frutos do mar. Tem pacientes que são alérgicos a camarão, mas eles não podem consumir outros crustáceos ou frutos do mar porque também vão desencadear uma reação — conta a nutricionista.
Não confunda uma com a outra
Alergia
- O alimento é o agente agressor
- É menos frequente
- Hereditária
Sintomas mais generalizados, que surgem imediatamente mesmo com a ingestão de pouca quantidade do alimento. Os principais são:
- Urticária e vermelhidão na pele
- Coceira intensa
- Dificuldade para respirar
- Inchaço no rosto ou na língua
- Vômito
- Diarreia
Intolerância
- O alimento não é digerido corretamente
- É mais frequente
- Sem histórico familiar
Sintomas gastrointestinais, que podem demorar até 30 minutos para aparecer, sendo mais grave quanto maior for a quantidade de alimento ingerido. Os principais são:
- Dor de estômago
- Inchaço na barriga
- Gases
- Sensação de queimação na garganta
- Vômito
- Diarreia
A condição virou causa
A psicóloga Ivana Aquino Dias de Araújo, 39 anos, usou as alergias alimentares da filha como impulso para orientar outras pessoas que sofrem ou relutam em se adaptar às mudanças. Maria Luísa, seis anos, começou a ter sintomas de alergia com uma semana de vida. O pequeno corpo da menina não aceitava leite, algumas frutas, soja, carne vermelha, peixes e ovo.
A mãe conta que, na época, insistiu em continuar com a amamentação, e por isso também foi obrigada a cortar todo tipo de contato com os alimentos aos quais a filha era alérgica. O organismo de Maria Luísa foi amadurecendo e, hoje, a menina tem apenas alergia à proteína do leite e à banana.
— Amamentar um bebê alérgico é muito mais difícil. As pessoas acham frescura, não levam a sério, excluem a mãe de muitas questões sociais. Tem de ter uma cabeça fria. Levar tuas marmitas para festas, ser alvo de deboche, ser chamada de neurótica é realmente difícil — relembra Ivana.
Por conta do preconceito, a psicóloga criou um grupo no Facebook para ajudar mães que vivem e sofrem do mesmo cenário. As orientações acabaram virando trabalho sério: Ivana se especializou em psicologia de comportamento alimentar, apostando no apoio mental e na consultoria em escolas.
— Há algumas semanas, minha filha viveu o primeiro episódio de bullying por não poder comer guloseimas com leite em um lanche coletivo. É de partir o coração. Mas o que eu vejo é que algumas mães acabam rotulando a criança. Essas mães reduziram suas vidas aos cuidados da alergia alimentar e não curtem os momentos prazerosos da maternidade. Isso é prejudicial — conclui.