Moacyr Scliar deixou uma herança característica das pessoas extraordinárias: seus amigos nunca se cansam de falar dele. Isto se tornou evidente nos muitos encontros programados para celebrar os 80 anos de seu nascimento. Nunca convivemos muito, mas nos cruzamos várias vezes nas esquinas da vida corrida que levávamos. Na primeira vez, encontrei-o na UTI do Pavilhão Pereira Filho. Ele tinha sofrido um grave acidente de carro, quebrado várias costelas, e estava gemendo de dor. Naquela noite, ao voltar tarde de uma festa, resolvi dar uma passada no hospital para ver como ele estava, e o encontrei dormindo. Um tempo depois, enquanto aos pés da cama, eu o observava, preocupado com a sua respiração pesada, ele despertou, olhou-me, sorriu e voltou a dormir.
Dias depois, escreveu uma linda crônica contando o quanto era confortador para um paciente assustado na UTI acordar no meio da madrugada e encontrar dois olhos grandes a vigiar-lhe o sono. Nos anos que se seguiram, professores da mesma escola de medicina, organizamos algumas jornadas de literatura com a intenção demostrar aos estudantes que todo exercício intelectual que servisse para aumentar-lhes a sensibilidade seria de enorme valia.
Estávamos alinhados com a tendência crescente das melhores escolas médicas do mundo de introduzir nos currículos da graduação os temas que discutam humanidades,num explícito pedido de socorro da medicina à literatura,coma clara intenção de resgatar os ingredientes básicos de uma relação afetiva que precisa ser retomada nos seus fundamentos essenciais.
Lembro-me de uma noite em que espalhamos pela mesa central no saguão os livros considerados imprescindíveis, comprados em sebos da cidade. Assim, ao chegar, os estudantes depararam com exemplares de A Montanha Mágica, A Morte de Ivan Illich, A Doença como Metáfora, A Cidadela, Sinto Muito, e
O Alienista. Enquanto eles folheavam os livros,com aquele ar indecifrável que tem todo o estudante, perguntei ao Scliar:"Você acha que isto vai ajudar?", e ele respondeu com um sorriso debochado:"Bom, Camargo, nós fizemos a nossa parte. Agora é só esperar que Thomas Mann, Tolstoi, Susan Sontag, Cronin, Lobo Antunes e o Machado façam a deles".
Nosso último encontro foi no Santos Dumont, no Rio, em novembro de 2010. Ele aguardava um voo para Salvador e eu voltava para casa. Ao ver-me, interrompeu de imediato a conversa com um desconhecido, puxou-me pelo braço e disse: "Obrigado por me salvar. Este chato estava já na décima piada de judeu, e eu desesperado que ele contasse ao menos uma que eu não conhecesse!".
Ocorreu-me, então, o quanto seria divertido se ele proferisse uma conferência na Academia Nacional de Medicina sobre o humor judaico, um dos seus temas preferidos. Ele ficou entusiasmado com o convite e nos despedimos. Só nos esquecemos de combinar que ele não morresse antes do fim daquele verão.