Se há uma verdade, é que é preciso mentir para viver em sociedade. Mentimos para tirar alguma vantagem ou nos livrarmos de culpa, para poupar alguém de uma notícia dura ou garantir a própria sobrevivência. Mentimos ao dizer que, sim, está tudo bem, quando não está; que a apresentação entediante foi boa; que gostamos daquela nova cor de cabelo. Sinceramente, quantas vezes você já mentiu hoje?
As pessoas inventam histórias para serem mais felizes, para alegrar ou não magoar os outros. Para proteger alguém ou a si mesmas. Para conquistar um par, para conseguir uma vaga de emprego ou uma promoção. Para evitar as consequências negativas de um erro e preservar a própria reputação. Por medo, por amor, por vaidade, por pena. É uma prática comum em todos os aspectos da vida que envolvam relações sociais.
A mentira pode ter um preço alto: o caso dos nadadores americanos que inventaram um assalto com direito a arma apontada para a cabeça para encobrir uma noitada regada a álcool e baderna em um posto de combustíveis, quase causando um incidente diplomático entre Brasil e Estados Unidos durante a Olimpíada, traz reflexões sobre a necessidade e os efeitos de mentir. A história inventada por Ryan Lochte acabou se tornando uma grande obra de ficção, tomando proporções maiores a cada entrevista, a cada depoimento, a cada nova imagem divulgada – até ser, enfim, desmascarada. Eles precisavam ter mentido?
– Há pessoas que acreditam não mentir, ou que dizem fazê-lo apenas raramente. Essas pessoas estão enganando a si mesmas. Estão mentindo para si mesmas sobre mentir. Essa é uma habilidade social muito importante, e qualquer um que evite mentir está fadado a ser um pária – garante David Livingstone Smith, professor de filosofia na Universidade da Nova Inglaterra, nos Estados Unidos, e autor de Why we lie: the evolutionary roots of deception and the unconscious mind (Por que mentimos: as raízes evolutivas do engano e a mente inconsciente, em tradução livre), em entrevista por e-mail a ZH.
Dizer sempre a verdade é ficar em desvantagem
Imagine um mundo em que todas as pessoas fossem completamente honestas – esforço já feito por filmes como O primeiro mentiroso, de 2009, e, em parte, por O mentiroso, com Jim Carrey, de 1997. Todos saberiam como são vistos aos olhos dos outros, o que dificultaria as relações sociais. Ninguém teria problemas em expressar seu descontentamento, e a simpatia perderia espaço. Seria um mundo mais verdadeiro, mas talvez mais triste.
– Mentir é algo que faz as interações sociais ocorrerem de maneira mais suave. E, se você sempre conta a verdade, vai ficar em desvantagem. Quando somos totalmente honestos, nos tornamos não muito agradáveis. Queremos ouvir mentiras de outras pessoas. Em geral, ficamos contentes em não ouvir a verdade sobre nós mesmos – afirma Robert Feldman, professor de ciências psicológicas e do cérebro na Universidade de Massachusetts, também nos EUA, em entrevista por telefone a ZH.
Para Feldman, que escreveu o livro The liar in your life (O mentiroso em sua vida, em tradução livre), ludibriar é algo tão natural que é preciso um esforço para não fazê-lo. Só não vai mentir a pessoa que tentar, deliberadamente, falar a verdade o tempo todo. Para quem questiona por que viver de enganos, a resposta dele é sincera: como não mentir?
Mentiras justificáveis, mentiras condenáveis
Mentimos porque funciona. Porque, lá na infância, vimos que uma inverdade nos livrou de alguma punição – ainda que trouxesse um novo sentimento, o da culpa. Mentimos porque isso faz as pessoas se sentirem melhores, ou porque as livra de uma decepção.
Mas é claro que dizer a verdade é a atitude mais desejável. Todo mundo odeia mentiras e ninguém quer ser visto como um mentiroso. Todas as pessoas, porém, mentem com constância – a familiares, a amigos, a estranhos. O problema, talvez, esteja quando isso afeta a própria imagem: enganar alguém por um motivo justificável não costuma ser visto como um ato condenável, mas ficar taxado pela atitude, ser conhecido como um mentiroso, passa a ser assustador.
Isso acontece porque há mentiras e mentiras. Falar que gostou de um prato servido na casa de parentes quando, na verdade, a iguaria não caiu bem é socialmente aceito. Parece pior dizer que a comida não estava boa do que simplesmente ingeri-la e guardar a opinião para si. Já não revelar que se teve um caso extraconjugal, mantendo o relacionamento em segredo até ser descoberto, é algo muito mais reprovável.
Talvez o ponto de corte entre uma mentirinha leve e um grande engodo esteja no nível de envolvimento das pessoas afetadas. Mentir para criar uma versão melhor de si mesmo a estranhos é uma coisa; tentar enganar o mundo inteiro ao inventar um assalto é outra. Quando somente o próprio indivíduo é beneficiado ou sua inventividade ajuda a poupar alguém, a reação é menor do que quando o escárnio atinge um cônjuge, uma família, uma nação.
Mentir é humano. E persistir na mentira?
Se mentir faz parte das nossas vidas, o que explica a insistência em continuar dando asas à história quando ela toma proporções maiores, mesmo diante de fatos que a desmentem? Não seria mais fácil, depois de ser desmascarado, simplesmente contar a verdade e admitir o erro?
Nem sempre. Aí entram o orgulho, o medo da pecha de mentiroso e intrincados jogos mentais que fazem com que o cérebro elabore invenções cada vez mais complexas para seguir tentando se livrar da culpa. O temor de admitir que tentou enganar a todos costuma ser maior que a vontade de esperar até que a questão seja deixada de lado, insistindo no erro.
– Geralmente, não estamos preparados para sermos pegos mentindo. Assim, ou deixamos claro que aquilo era uma invenção, ou respondemos de uma maneira que aumenta a mentira, tornando o erro cada vez maior – diz o psicólogo Robert Feldman.
É como uma bola de neve: quanto mais a história vai crescendo, mas vai ganhando novos elementos – e maior a chance de ser, enfim, descoberta. Se não fossem expostos às imagens das câmeras de segurança no posto de combustíveis, se não tivessem sido vistos rindo e brincando ao chegar na Vila Olímpica, será que os nadadores teriam confessado?
Para o psicólogo, talvez o melhor em casos assim, depois que a história já foi inventada, fosse assumir a culpa e aguentar as consequências. Pode ser que a perda de patrocínios e o prejuízo à reputação dos atletas não tivesse sido tão grande se a confissão fosse mais precoce. Mas esse é também um dos reveses da mentira: quando cai a máscara, não há como saber como passará a ser vista a pessoa que estava por trás dela.
As pessoas mais difíceis de enganar
A mentira, por vezes, é algo espontâneo: não pensamos muito antes de dizê-la, e uma leve insistência por parte do interlocutor pode revelar a verdade. Nem sempre é por mal, pode ser uma simples reação protocolar, um "tudo bem". Quase um reflexo, como a perna que sobe ao ser tocada por um martelo no joelho.
– A maioria das pessoas pensa que enganar alguém é algo deliberado. Pensa nisso como algo que fazemos consciente e estrategicamente. E claro que isso acontece bastante. Cada pessoa que está lendo isto mente conscientemente todos os dias. Mas essa é apenas uma pequena parte do cenário. A maior parte das nossas mentiras é inconsciente, irrefletida. Elas saem das nossas bocas sem que ao menos percebamos – reflete o filósofo americano David Livingstone Smith.
A predisposição para dizer inverdades varia também conforme as pessoas envolvidas. Enganar o companheiro ou familiares costuma ser mais difícil: em primeiro lugar, porque eles geralmente conhecem bem o mentiroso em potencial, e em segundo porque a própria pessoa vê menos necessidade em inventar alguma história ou desculpa para pessoas próximas. Mas, quando isso acontece, os efeitos tendem a ser piores que perante desconhecidos.
– Quanto melhor conhecemos alguém, menos vamos tentar enganá-lo. Por outro lado, quando o fazemos, essa tende a ser uma mentira grande – diz Feldman.
O entendimento psicológico do que é uma mentira é amplo. Para os pesquisadores, mentir não é apenas um ato verbal: também passamos inverdade na postura, na omissão, ao forçar um sorriso, pelo modo como nos vestimos para determinada ocasião, com o uso de cosméticos, como maquiagem, ou com a realização de cirurgias plásticas. Para Smith, perceber isso é se dar conta de que o comportamento humano é repleto de enganações.
Quanto às mentiras verbais, haveria uma diferença entre aquelas pensadas e as espontâneas. Principalmente no que diz respeito à capacidade de perdoar. Bem mais comuns, os engodos, digamos, por reflexo seriam menos graves, enquanto a atitude de conjeturar todo um plano para explicar um erro ou evitar as consequências negativas de algum ato falho seriam muito mais difícil de aceitar sem reprimenda.
Quando mentir vira uma doença
Sair impune de uma mentira costuma ser um incentivo para que a prática seja repetida – um aprendizado que vem desde a infância. Mas enganar os outros também tem seus riscos. Quando uma pessoa mente e outra acredita, a primeira entende que saiu ganhando. Mas quando a farsa é detectada, lá se vão as chances do enganador continuar obtendo vantagens.
É a clássica história do jovem pastor que mentia sobre a aproximação de um lobo para se divertir, atraindo a atenção dos camponeses, até que um dia o animal realmente surgiu e atacou seu rebanho. Os pedidos de ajuda, então, foram inócuos: ninguém acreditava mais no garoto.
O pastorzinho não é o único mentiroso clássico: a serpente ludibriou Adão e Eva para que comessem a maçã, Odisseu mentiu seu nome ao ciclope para preservar a própria vida, e Pinóquio, o mais famoso dos mentirosos, via seu nariz crescer a cada nova invenção. Todos aprenderam com o erro – ou a astúcia, no caso do grego, já que nem todas as mentiras são maléficas. Também se mente, afinal, para preservar a privacidade ou para garantir a segurança, própria ou de outros. Mas, quando feita de maneira compulsiva, a mentira deixa de ser uma leve escapada da realidade para ganhar contornos de patologia.
A mitomania, também conhecida como síndrome de Pinóquio, e a sociopatia são alguns dos transtornos atribuídos à necessidade visceral de enganar os outros – seja em benefício próprio, seja para magoar alguém.
– O mitômano não conta uma mentira de vezes em quando, mente em todas as áreas de sua vida, na profissional, na amorosa, na relacional, enfim, em tudo que o cerca, pois sente que tem sua autoestima melhorada ao criar uma história que agrada aos outros. Às vezes, mente para receber atenção. Já um sociopata mente planejadamente e intencionalmente para manipular e ter vantagens pessoais – explica a professora de psicologia da Feevale Denise Regina Quaresma da Silva.
O risco maior está em tornar essa prática algo rotineiro, habitual. Quando não há mais remorso, quando não se vê problema em mentir, por mais grave que seja o assunto, há algo errado.
– Ninguém é totalmente verdadeiro, mas quando a mentira não traz mais sofrimento para a pessoa, ou ela não enxerga o malefício disso, aí podemos ter uma patologia – entende a psicóloga Pâmela de Freitas Machado.
As mentiras, na essência, não são incentivadas porque corroem o cerne de uma sociedade: a capacidade de confiar uns nos outros. Mas são também o que impede que as pessoas fiquem em pé de guerra umas com as outras, ao garantir um trato diplomático entre desconhecidos e suavizar verdades muito impactantes. Mentir é parte do que nos torna humanos – uma questão de sobrevivência e até de reprodução. Mas, a bem da verdade e da vida em comunidade, é bom que não se torne tão comum.
Está mais difícil mentir?
Diante de câmeras de segurança por todo lado, smartphones sempre a postos e capazes de gravar áudio e vídeo com grande qualidade, pode parecer que mentir se tornou mais difícil. A possibilidade de ser desmascarado, afinal, é maior agora que qualquer coisa pode ser registrada por qualquer um. Mas se por um lado a tecnologia facilita o trabalho de revelar verdade, por outro, manipular a realidade passou a ser bem mais comum.
O maior exemplo são as redes sociais. Para os pesquisadores, nunca se mentiu tanto: sobre o estado de espírito, sobre onde se está, o que se fez, até sobre quem se é. Qualquer um pode afirmar ser ou gostar do que bem entender, assumir a persona que quiser, como em um baile de máscaras virtual.
O fato de que tudo fica registrado não seria impedimento: o ambiente online daria uma sensação de invulnerabilidade, abrindo oportunidade para quem quer representar outra personalidade ou esconder sua verdadeira identidade, interagindo de maneira anônima ou assumindo outro perfil. O volume de informações também é tão grande que fica mais difícil de a verdade vir à tona.
– Quando nos comunicamos por meio eletrônico, podemos limitar a quantidade de informações que outros receberão. Em conversas cara a cara, podemos não só ouvir as palavras, mas também ver o tom de voz, os movimentos, todo seu comportamento. Tudo isso ajuda a entender se há verdade ou não nas suas declarações. O ambiente virtual torna muito mais difícil distinguir sinceridade de falsidade, verdades de mentiras – conclui David Livingstone Smith.