No dicionário, o significado da palavra “gestar” sugere a concepção de algo novo. Conceber, produzir, gerar, formar, desenvolver, dar origem a alguma coisa. Palavras que se aplicam ao nascimento de um novo ser. Uma mãe, um pai, ou, quem sabe, duas mães ou dois pais. A chegada de um novo membro na família desperta emoções e requer amor, carinho e responsabilidade. Para adotar um filho também é preciso gerar dentro de si a vontade e preparar-se como na gravidez.
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Adoção é amor conquistado, criação de vínculos, exercício incondicional do afeto, do acolhimento, do encontro marcado. Ao lado da expectativa e da alegria, o receio e a ansiedade por estar fazendo o que é certo.
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– É um processo longo e contínuo de ajustamento para que tudo funcione em equilíbrio. As pessoas acham que é uma coisa mágica, mas é uma vida construída todos os dias. Quando a pessoa adota, é claro que ela faz isso por querer ter um filho, mas esse filho não vem para servir aos pais. Não pode ser um filho para satisfazer desejos egoístas e pessoais. Quando a gente se dispõe a receber a criança, tem que estar dispostos a receber tudo o que vem junto, inclusive a carga emocional – comenta uma mãe adotiva, dona de casa de 35 anos, que não quis ser identificada.
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Ela e o marido, um funcionário público de 38 anos, adotaram um casal de irmãos em maio do ano passado. Os dois já tinham um filho biológico, hoje com 8 anos, quando as crianças, de 3 e 5 anos, chegaram ao novo lar.
– Na verdade, ficamos pouco tempo na fila de espera. Foi uma situação excepcional, eram irmãos. Minha irmã estava na fila há dois anos. Como não fizemos quase nenhuma restrição no cadastro, fomos chamados – explica a mãe.
Mudanças e adaptações
A transformação na vida da família vem em fases e se dá em várias esferas. Dar banho, colocar para dormir e dar comida são atitudes simples, mas que exigem adaptação. A rotina muda, e cada criança reage de maneira diferente da outra. Mas, além das mudanças físicas e estruturais, mudam também as emoções dos envolvidos.
– A rotina mudou bastante. É muito diferente pular de um filho para três. Todos nós ainda estamos nos adaptando à nova vida. Parece que o tempo diminuiu, pois precisamos fazer mais coisas com eles e para eles. Todo dia é de muita intensidade. Eles riem, se divertem, mas também choram muito. Por muitas coisas. O controle das emoções ainda é uma coisa difícil para eles – relata o pai.
Adoção é, também, doação. É mais que preencher uma lacuna ou um desejo pessoal. A criança ou adolescente aptos para uma nova família não escolheram estar nessa situação. E o contexto pode ficar ainda mais complicado quando a adoção é tardia. Isso porque a criança, mais velha ou adolescente, já não tem motivos para confiar nos adultos, pois a figura dos pais, que deveriam representar confiança e segurança, está distorcida.
Os dois lados da espera
Em Santa Maria, há apenas uma criança na lista de espera por adoção. Quem aguarda é um menino, de cor parda, com idade entre 11 e 15 anos. No Rio Grande do Sul são 1.003 crianças ou adolescentes no Cadastro Nacional de Adoção (CNA), o equivalente a 15,18% do total do país. O número é o segundo maior do Brasil, ficando atrás apenas de São Paulo, onde são 1.435 (21,74%).
Do outro lado, a lista de espera tem 110 famílias que aguardam a chance de acolher um filho, segundo a promotoria da Infância e da Juventude. No RS, são 5,5 mil, e, no país, 35,9 mil. Os mais velhos são os menos preferidos e, muitas vezes, acabam passando a adolescência em abrigos. Na cidade, há duas instituições: o Lar de Miriam e a Aldeias Infantis SOS. A Vara da Infância e da Juventude não informou quantas crianças estão abrigadas ou em tentativa de reintegração à família biológica.
Segundo a assessoria do Juizado, o tempo de espera para a adoção é maior para aqueles que desejam crianças menores de 2 anos, do sexo feminino, saudáveis e brancas. As que aguardam em lares em geral fazem parte de grupos de irmãos, têm alguma doença e mais de 3 anos. Antes de encontrar um lar definitivo, a Justiça preza pela manutenção dos vínculos com a família de origem e, para isso, aplica medidas assistenciais à família para a superação da situação de risco.
Para Daniela Ramos Sonza, coordenadora do Grupo de Apoio e Incentivo à Adoção de Santa Maria (Gaia), a morosidade no processo de adoção deve-se, também, à forma como o adotante é tratado.
– Tratar o candidato à adoção no balcão do Juizado só como um preenchedor de formulário que vai entregar um papel não vai ampliar o perfil e as preferências da adoção. Tratar o adotante como culpado não é solução. É preciso desconstruir conceitos pré-estabelecidos, que levam às restrições – afirma.
Segundo o Juizado, o processo de adoção segue os prazos previstos na legislação. Após o estágio de convivência, e com parecer favorável da equipe técnica, a sentença determina a lavratura do novo registro de nascimento.
Os laços de amor que unem Silvia e o pequeno Gabriel
Para fazer a fila andar, o Grupo de Apoio à Adoção de Santa Maria (Gaia), fundado em janeiro de 2015, promove encontros e debates com pais adotivos, famílias que estão à espera da adoção e comunidade em geral na tentativa de desfazer impressões e conceitos pré-estabelecidos, visando ampliar o olhar do adotante.
– Até quando se quantifica e qualifica um filho? Não podemos exigir um ISO 9.000 para uma criança. O problema do processo é o adulto. É aquele que gerou e não soube proteger, deixando-o em situação de vulnerabilidade, é o outro, na face da Justiça, que demorou a destituir ou restituir o poder familiar e o deixou em um depósito de rejeitados, e é também o adotante de visão restrita – questiona Daniela Ramos Sonza, coordenadora do grupo.
Segundo ela, um trabalho integrado entre unidades básicas de saúde, Conselho Tutelar, grupos de apoio, equipe técnica, promotoria e Juizado ajudaria a diminuir o tempo de espera na fila para quem quer adotar e para quem precisa ser adotado.
A professora Silvia Beatriz Fagundes de Carvalho, 41 anos, é um dos casos que fogem aos números. Na época casada, ao entrar na fila de adoção, ela não impôs nenhuma restrição. Em 2012, quando o telefone tocou e ela recebeu a notícia de que o casal estava habilitado a uma adoção, o sentimento de mãe já falou mais alto.
– Quando eu ouvi aquilo, meu mundo parou. Pensei: encontrei quem eu estava procurando. Eu imagino que a notícia tenha sido tão boa quanto descobrir que está grávida. Nós não colocamos restrições. Eu não estava em um supermercado, escolhendo um produto. Do outro lado da linha, a assistente me disse que tinham um menino de quase 4 anos e que ele era especial. Quando falamos que queríamos conhecê-lo, foi uma festa – lembra Silvia.
Hoje com 8 anos, Gabriel Denardin Fagundes, que tem Síndrome de Down, já superou vários desafios. O pequeno nasceu prematuro, aos 7 meses de gestação, e foi abandonado pela mãe ainda no hospital. Com problemas respiratórios, ele precisou ficar 2 anos internado.
– Quando eu vi o Gabriel, tive a certeza: é nosso. Era para ser – recorda a mãe.
A certidão de nascimento com registro do nome só saiu em janeiro deste ano. O pequeno ainda tem o acompanhamento de nutricionista, pediatra, fonoaudiólogo, dentista, oftalmologista e fisioterapeuta, pois, há até pouco tempo, tinha dificuldades de locomoção.
– Eu vivo em função dele. Existe a Silvia antes do Gabriel e, agora, existe a Silvia depois dele. Eu gerei meu filho no coração. Minha vida começou novamente quando eu o conheci. E, hoje, eu sei que eu luto e vivo por ele – comenta, emocionada.
O Grupo de Apoio à Adoção de Santa Maria (Gaia) realiza encontros mensais, sempre no último sábado do mês, das 10h ao meio-dia, no prédio da antiga reitoria (Rua Floriano Peixoto, 1484, sala 604).