Em 1902, o jovem médico Oswaldo Cruz tentava convencer autoridades e população da necessidade de eliminar o Aedes aegypti, o mosquito da febre amarela. Cruz, que tivera sucesso eliminando ratos e suas pulgas para conter a peste bubônica no Rio, estava sozinho ao compreender a importância de conter um vetor - organismo que transmite um vírus ou bactéria - mesmo que ainda não haja tratamento para a doença que possa causar. Quando finalmente conseguiu apoio do governo, organizou brigadas que iam de porta em porta dizimando focos do mosquito. Enfrentando muita resistência no início, Cruz, em 1907, era aclamado por erradicar a febre amarela.
Zika causa medo ao se alastrar pelo mundo
Infelizmente, aos poucos as medidas de contenção ao mosquito foram sendo abandonadas. Hoje, 2016, o Brasil enfrenta surtos periódicos de quatro vírus transmitidos pelo Aedes: dengue, chikungunya, o da febre amarela (próximo a florestas) e, mais recentemente, o zika. De todos, o zika era o que menos preocupava, até mais ou menos seis meses atrás. Os sintomas da infecção são mais brandos, não há complicações hemorrágicas, renais ou cardíacas graves associadas. Os milhares de casos de microcefalia associada à suposta infecção de gestantes pelo vírus reportada subitamente no Brasil estarreceram a população e chocaram a comunidade científica internacional. Pior ainda, o fenômeno encontra os cientistas brasileiros não apenas desestruturados para enfrentar surtos epidêmicos virais, mas também amargando um pesado corte de verbas, desde o início de 2015.
Não há ainda na literatura científica uma ligação entre infecção por zika e microcefalia. Ainda precisa ser determinado se o vírus da gestante chega até o embrião. Uma possibilidade é que os danos ao feto ocorram só na presença do zika junto com uma outra infecção, ainda a ser determinada. Outras infecções por vírus (citomegalovirus) ou parasitas (toxoplasma) já foram associadas, em menor grau, a síndromes como essa.
OMS estima que quatro milhões de pessoas terão zika em 2016
O zika é um vírus principalmente de países pobres, pouco se pesquisa ou sabe sobre sua biologia. Seu diagnóstico, hoje feito principalmente pelos sintomas clínicos, ainda é impreciso. Pode-se fazer um teste genético para a presença do vírus, mas funcionaria apenas em casos agudos. O melhor teste seria um que mede anticorpos, ou memória, da infecção. Este não existe ainda para zika, em nenhum lugar do mundo. Nada se sabe sobre que tipo de resposta imune é gerada na sua infecção, portanto não sabemos que tipo de resposta teria de ser gerada por uma vacina para realmente proteger.
A declaração do ministro da Saúde (Marcelo Castro) - "Vamos torcer para que as mulheres se infectem antes da gravidez, assim já ficam imunizadas e não precisam de vacina" - ilustra lamentavelmente a total falta de conhecimento sobre imunização dos profissionais que deveriam liderar o esforço para controlar a epidemia. Até o brasileiro médio sabe que contrair gripe, ou dengue, não protege de uma nova infecção, diferentemente de sarampo, por exemplo. Os vírus não são todos iguais. Tristemente, tal declaração deixa transparecer ainda a falta de intenção em investir no desenvolvimento de uma vacina.
Calamidade causada por zika vírus é preço pago por negligência em relação ao Aedes aegypti
O Brasil conta com instituições de excelência para pesquisa em doenças infecciosas, como a Fiocruz, fundação nomeada em homenagem ao sanitarista, com sedes distribuídas pelo país. Elas empregam profissionais reconhecidos internacionalmente. Temos profissionais tarimbados em universidades também. Contudo, toda a pesquisa no Brasil sofre cronicamente com orçamentos desproporcionalmente baixos para os desafios. Não temos incentivos para o desenvolvimento de novas tecnologias. Este problema é agravado pela burocracia para a importação de insumos e equipamentos. Finalmente, a falta de diretrizes claras e constantes para a identificação e solução de problemas críticos de saúde no país faz com que novas políticas públicas sejam constantemente geradas e abandonadas.
Apesar de tudo, os cientistas brasileiros já começaram a se organizar em redes, para tentar encontrar respostas. No Rio, no Ceará e no Paraná, onde existem sedes da Fiocruz, virologistas já elaboram projetos para produzir um teste imunológico, além de começar a estudar a resposta em modelos animais ou em células isoladas. Em São Paulo, criou-se uma rede para estudar o impacto da epidemia. Aqui no Rio Grande do Sul, onde os vírus respiratórios nos assolam no inverno, até hoje não existem grupos estruturados para trabalhar com imunologia viral - nunca foi considerado prioridade para o governo.
Todos nós podemos fazer algo para reverter esse quadro: na próxima eleição, assegurar que nosso candidato tenha posicionamento claro (e histórico) em política de ciência e tecnologia. Porque, hoje, a perspectiva de uma geração ou mais de pessoas com defeitos graves de desenvolvimento não parece ser suficiente para fazer as autoridades entenderem o crime que se comete ao não financiar e acompanhar sistematicamente o desenvolvimento de pesquisa. Me pergunto então se há algo ainda mais trágico, mais devastador, que talvez tivesse esse efeito. Sinceramente, acho que ninguém gostaria de encontrar essa resposta.