O professor aposentado de Química Gilberto Chierice enfrentava dias tempestuosos há pouco mais de um mês, em meados de outubro. Responsável pelo desenvolvimento da fosfoetanolamina sintética, um composto ao qual atribuía superpoderes contra o câncer, ele se achava desautorizado pela Universidade de São Paulo (USP), a instituição onde trabalhara durante décadas, era recriminado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão federal responsável pela regulamentação de medicamentos, e sofria ataques pesados de entidades médicas brasileiras e de pesquisadores, que o chamavam de "charlatão".
O golpe de misericórdia foi uma reportagem do Fantástico, na Rede Globo, exibida no dia 18 e conduzida pelo médico mais famoso do Brasil, o oncologista Drauzio Varella. O programa pedia que a população não se deixasse enganar: não dava para confiar na fosfoetanolamina.
"Não há evidência que justifique o uso do produto", diz Diretor-clínico do Instituto do Câncer de SP
- Não é remédio. Cuidado - afirmava Drauzio.
Cercados de críticos, Chierice e a fosfo poderiam parecer acabados. Mas pouco mais de um mês depois, em uma noite de sexta-feira, o químico podia ser visto em um dos mais flamantes centros de poder do país, o Palácio dos Bandeirantes, sede do governo estadual paulista. Na mesma sala, ouvindo-o com respeito, encontravam-se o governador Geraldo Alckmin e ninguém menos do que o ministro da Saúde, Marcelo Castro. Naquele momento, a Anvisa já havia criado um grupo de trabalho para investigar a molécula, dois governos estaduais - incluindo o do Rio Grande do Sul - ofereciam-se para testar a substância e R$ 10 milhões da União estavam liberados para as pesquisas. O vento havia mudado completamente de direção.
As engrenagens que levaram autoridades políticas a somar-se à causa da fosfoetanolamina - contrariando o parecer de entidades científicas nacionais e internacionais - já estavam em rotação meses antes de Chierice tornar-se alvo de ataques generalizados. Durante duas décadas, o professor usou a estrutura do laboratório de química da USP em São Carlos (SP) para produzir a fosfo e distribuí-la informalmente entre doentes de todos os tipos de câncer, sequiosos por alguma terapia alternativa. Os advogados de Chierice afirmam que 16 mil pessoas tiveram contato com a molécula dessa forma.
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No ano passado, pouco depois de o professor aposentar-se da USP, a universidade publicou uma portaria proibindo o laboratório de dar continuidade à produção e à distribuição. Em lugar de banir a substância, a medida teve efeito contrário.
- As pessoas que tomavam a fosfo se desesperaram. A proibição da USP serviu para propagar a informação. Virou notícia. Começaram a surgir apoios, movimentações, contatos. Se a intenção era soterrar a opção para os pacientes, o tiro saiu pela culatra. As pessoas que usavam começaram a protestar - diz o advogado Fábio Maia, que assessora Chierice há sete anos.
Em vídeo, assista à entrevista com Gilberto Chierice, criador da fosfoetanolamina:
Quem usava o composto despejou o desespero nas redes sociais, apresentando a fosfo como um remédio milagroso que estava sendo sonegado. Antes conhecida por um público restrito, a droga começou a pipocar na timeline de legiões de brasileiros. Diante do burburinho de que havia uma pílula supostamente milagrosa contra o câncer, quem quer que estivesse doente ou tivesse alguém em situação delicada na família passou a nutrir uma nova esperança.
Entre as pessoas que depararam com uma dessas postagens está Ricardo Madelena, deputado estadual do PR em São Paulo. Em agosto, ele estava "passando o dedo pelo Facebook" quando encontrou algo sobre uma tal "pílula do câncer". Seu sogro havia morrido por causa da doença e sua mãe havia se submetido a uma cirurgia para retirar um tumor de mama. O deputado ficou interessado em saber mais. Por intermédio de um amigo comum, conseguiu o celular de Chierice. Dias depois, estava em visita à empresa do químico, em Araraquara.
- Passei três horas com o doutor Gilberto. Vi que é uma pessoa sem capitalismo, que não quer ganhar dinheiro, só quer ajudar. Quis dar um apoio a ele - diz Madalena.
O deputado começou a telefonar e enviar e-mails para o gabinete do governador Geraldo Alckmin, pedindo uma audiência para falar sobre a fosfo, mas não obtinha retorno. Em 20 de outubro, dois dias depois da reportagem do Fantástico, resolveu fazer uma solicitação formal. Encaminhou um ofício ao governador. Nada. O Palácio dos Bandeirantes não queria se envolver.
Academia de Medicina se posiciona contra fosfoetanolamina
Àquela altura, a fosfo havia virado estrela nos noticiários. Cerca de 5 mil liminares foram concedidas por tribunais de todo o país, obrigando a USP a fornecer a molécula a doentes. Entidades médicas soltavam notas inflamadas, lembrando que a substância nunca havia sido testada e, além de não ter efeitos positivos, poderiam implicar em riscos. Esse clima contrário, em lugar de enfraquecer a fosfo, deu-lhe força. Fez propaganda da droga.
Nesse quesito, nada superou em repercussão a reportagem do Fantástico. Milhões de brasileiros desavisados ouviram Drauzio Varella dizer para ficarem longe da suposta "pílula do câncer". Na prática, ficaram sabendo que havia uma tal de "pílula do câncer".
Nos dias seguintes, o interesse foi uma avalanche - e acabou angariando apoios importantes para os pesquisadores. No Rio de Janeiro, o defensor público federal Daniel Macedo assistiu o programa e questionou-se: "Peraí, será que está certo isso que o Drauzio está falando?". Macedo expediu ofícios para todos os lados, aproximou-se da equipe de Chierice e virou partidário ferrenho. Hoje, diz trabalhar em "articulação fina com o doutor Gilberto". É do defensor uma ação civil pública de 83 laudas, com abrangência nacional, que obteve uma decisão obrigando entes governamentais a testar a fosfo.
Com a população a pressionar, exigindo ação de seus representantes, deputados estaduais, deputados federais e senadores também começaram a se mexer. No dia 29 de outubro, Chierice e os outros pesquisadores da equipe, detentores da patente, foram convidados para uma audiência no Senado. Falaram durante cinco horas. Daniel Macedo e Madalena estavam lá, acompanhando o químico. O deputado deixou o encontro chateado com a falta de respaldo de Alckmin. Telefonou para a secretária do governador e foi incisivo: o governador tinha de dar retorno. Horas depois, Alckmin estava na linha, mas meio contrariado.
- Ele estava muito na defensiva. Tinha receio de tomar providências, por preocupação com a reação da classe médica - afirma Madalena.
Laboratório do Estado não tem dinheiro nem experiência para pesquisar fosfoetanolamina
Mas Alckmin também estava sob pressão. Parlamentares começaram a trazer a questão a ele: "O negócio é sério", diziam. Além disso, segundo o defensor Daniel Macedo, um pessoa "muito, muito próxima" ao governador teria feito um relato a ele sobre o uso da fosfo por um familiar. E quando ia ao Interior fazer alguma inauguração, o líder tucano via-se emparedado por populares:
- Governador, quando é que o senhor vai liberar a pílula do câncer?
Amargando os piores índices de popularidade de sua carreira, Alckmin telefonou a Madalena e disse que queria encontrar Chierice. No dia 23 de novembro, o deputado levou o químico ao palácio. A postura do governador agora era completamente diferente: conversou longamente com o pesquisador, deixou-se fotografar ao lado dele, tomou notas e divulgou o encontro pelo Facebook, em uma postagem repleta de fotos: "Solicitaremos à Anvisa que autorize o regime compassivo, que abre exceção para o uso da substância até que tenha aprovação final do governo federal. Também colocamos à disposição do pesquisador toda a estrutura do Estado, como hospitais, institutos de pesquisa e o laboratório FURP, para ajudar na conclusão das etapas para aprovação final da substância."
- Nessa reunião, o governador nos recebeu de outra forma, abraçando a causa, dizendo que podíamos contar com ele - comemora Madalena.
Ministério libera verba para fosfoetanolamina
Segundo o defensor Daniel Macedo, parlamentares e autoridades estaduais e federais, espremidas pela pressão das entidades médicas de um lado e pela pressão popular de outro, viram que era melhor pender para esta.
- Eles colocaram as coisas na balança. É lógico que muito políticos vão usar isso como plataforma eleitoral. É normal. Mas isso não interessa. O que interessa é que se avance nos testes clínicos - diz Macedo.
Na mesma semana do primeiro encontro com Chierice, Alckmin voltou a contatar o deputado Madalena. Contou que o ministro da Saúde viria para uma reunião na tarde de sexta-feira. Quando a pauta acabasse, explicou, queria que Marcelo Castro conhecesse Chierice. E foi assim que o químico que deixou a classe médica brasileira em polvorosa foi recebido pela maior autoridade em saúde do país.
- Foi uma grande vitória. Se não fosse a pressão pública, ele teria encerrado os assuntos com o governador e não teria vindo conversar conosco. Não quero me gabar, mas minha insistência não foi em vão. Futuramente, pode ser que apareçam dividendos para mim. Mas não é isso que eu quero. Estou fazendo meu trabalho - afirma Madalena.
Ministro desencoraja investimento gaúcho
Uma das primeiras autoridades a abraçar a fosfoetanolamina foi o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, o gaúcho Celso Pansera. No começo de novembro, havia um mês no cargo, ele anunciou que destinaria R$ 10 milhões para estudar o composto:
- A polêmica surgiu no momento em que eu tinha um instrumento para fazer algo, que era o ministério. Tomei a iniciativa de chamar o pessoal da área de tecnologia e perguntar se não tínhamos como jogar uma luz nessa controvérsia. Fizemos um remanejamento de verbas para isso.
Há uma semana, em visita ao Rio Grande do Sul, o ministro tratou da fosfo com o governador José Ivo Sartori. No Estado, a equipe de Gilberto Chierice tinha encontrado um aliado importante no deputado estadual Marlon Santos (PDT), da base de apoio do governo. Em outubro, Santos mobilizou os deputados gaúchos a conceder a medalha do Mérito Farroupilha, maior distinção do parlamento, ao químico paulista. No mês seguinte, convenceu Sartori a fazer um termo de cooperação com Chierice, por intermédio do qual o Laboratório Farmacêutico do Estado (Lafergs) assumiu o encargo de tentar desenvolver um remédio a partir da fosfoetanolamina.
Segundo o ministro Celso Pansera, Sartori relatou ter sofrido pressão popular para agir.
- As famílias gaúchas pressionam o governo, porque querem a fosfoetanolamina. Existe ansiedade em relação a ela. Os parlamentares da Assembleia e os canais de comunicação do governo recebem muito isso - diz o ministro.
No encontro com Sartori, Pansera disse ao governador que os estudos do Lafergs não são necessários, porque o governo federal já se encarregou das mesmas pesquisas, que devem começar a apresentar resultados entre janeiro e fevereiro.
- Expliquei para ele que entendo a pressão dos doentes e das famílias gaúchas por uma resposta, mas que não havia necessidade criar outra fonte de despesa para o Estado em cima daquilo que já estamos fazendo. Ficou acertado que o governo gaúcho respaldará nossa ação e não tomará nenhum iniciativa sem conversar com a gente antes.