Quem já se submeteu ao convívio massacrante da burocracia sabe bem o quanto o burocrata profissional odeia subir a escada hierárquica em busca da solução de um problema que ultrapassou os limites do seu reinado. Provoque essa situação ameaçando-o com a responsabilização pela perda de uma vida humana e ele cederá, mas terás construído um inimigo feroz e duradouro.
O Cláudio Lacerda é um obstinado por fazer o que deve ser feito e ganhou crachá de inscrição instantânea no clube dos que não aceitam que as mazelas de um país pobre sejam limitantes do tamanho dos seus sonhos.
Há 16 anos, começou um programa de transplante de fígado em Recife, e o livro que publicou com histórias emocionantes descreve uma verdadeira corrida com obstáculos, transpostos um a um com persistência invejável, ultrapassando os mil transplantes.
Quem trabalha com transplante descobre que as histórias se repetem, unidas pela energia contagiante que brota da percepção que, quando uma vida pode ser salva, não há dique burocrático que detenha o tsunami da determinação.
A Rana tinha só quatro aninhos mal-vividos pela doença hepática congênita que, desde logo, anunciou que nenhuma paliação seria efetiva. Com a consciência da enorme dificuldade de se conseguir um doador de tamanho compatível com o seu corpinho mirrado, ela foi colocada numa lista de espera plena de improbabilidade.
O anúncio da existência de um doador pediátrico em Maceió euforizou o grupo que viu renascer a esperança de salvar aquela bonequinha de sorriso triste. E foi no embalo dessa expectativa que a burocracia deu o ar da graça. A pessoa que atendeu ao telefone para responder ao pedido de liberação do helicóptero para busca do órgão na capital vizinha antecipou que naquele horário era impossível e, apesar dos apelos, desligou o telefone.
Claro que a capacidade de luta e a tenacidade de quem tinha feito mil transplantes no nordeste brasileiro tinham sido subestimadas. Os intermediários foram dispensados e ele assumiu o controle da operação "Helicóptero Já". Confirmada a negativa com uma justificativa estúpida como "não pode e pronto", o primeiro obstáculo foi removido diante da ameaça de que a morte da criança seria a responsabilidade de alguém e que, antes que o telefone fosse novamente desligado, o nome desse alguém tinha que ser anunciado.
Confirmado que esse tipo de gente não se comove, só restava mesmo a ameaça pertinente de responsabilização pela vida desperdiçada. E dum pingo de gente que nem vivera para entender que existem pessoas que não se importam que alguém possa morrer desde que se cumpra o regulamento. No meio da madrugada, com o estresse em ascensão e o tempo se esgotando, a discussão mudou de nível e, acionado o burocrata grau 4, este lançou mão de um argumento que seu cérebro de ervilha deve ter concebido como definitivo: "Helicóptero, a esta hora, só com autorização do governador!". Maravilha que alguém podia decidir, porque a resposta estava pronta: "Então, acorde o governador!".
Pouco provável que, em toda a linda história de Pernambuco, um governador tenha sido acordado por uma causa mais justa.