Habituados a avanços lentos e promessas grandiosas que acabam por não se confirmar, médicos e pesquisadores da área do câncer costumam ser cautelosos diante de novas linhas de tratamento. Por isso mesmo, é significativo o entusiasmo que muitos deles demonstram quando o assunto é a imunoterapia. Apesar de tratar-se de uma estratégia que recém começa a ser incorporada na prática clínica, ela já merece adjetivos como "extraordinária", "fantástica" e "revolucionária". Em 2013, foi considerada o avanço do ano pela revista Science, da Associação Americana para o Progresso da Ciência. Nos dias atuais, existem já milhares de pacientes que só estão vivos por causa dela.
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- Pelo que vejo acontecer nos principais centros do mundo, posso dizer que estamos entrando em uma nova era do tratamento do câncer. A imunoterapia está revolucionando os resultados em vários tipos de tumor - celebra o oncologista gaúcho André Fay, pesquisador visitante do Dana-Farber Cancer Institute/Harvard Medical School (EUA), instituição de ponta no estudo da técnica.
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O curioso é que as medicações imunoterápicas, diferentemente de tratamentos tradicionais como a quimioterapia ou a radioterapia, não se preocupam em atacar os tumores. O que elas fazem é agir sobre o sistema imunológico, mobilizando as defesas naturais do organismo para combater as células cancerígenas. Em teoria, o conceito relacionando o sistema imunológico e o desenvolvimento de tumores existe há mais de um século. Na prática, utilizar o próprio sistema imunolólgico no combate ao câncer começou a funcionar nos últimos anos, graças a descobertas recentes sobre a biologia dos tumores.
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A partir dos anos 80, pesquisadores identificaram a presença de certos receptores nos linfócitos T, a infantaria do sistema imunológico. Esses receptores - os mais conhecidos são o PD-1 e o CTLA-4 - funcionam como uma espécie de botão de liga e desliga das células de defesa. Por meio de proteínas presentes na sua membrana, as células cancerígenas conseguem acionar esse interruptor, desligando o sistema imunológico. O resultado é que o tumor cresce, sem ser reconhecido como uma ameaça.
André Fay - que voltou recentemente ao Estado para atuar no Instituto do Câncer do Hospital Mãe de Deus, mas continua trabalhando com pesquisadores do Dana-Farber Cancer Institute pioneiros no campo da imunoterapia - observa que o mecanismo usado pelos tumores é o mesmo que protege órgãos e tecidos saudáveis. Eles também expressam proteínas que inativam o sistema imunológico.
- No Dana-Farber, pesquisou-se por muitos anos a interação entre a célula de defesa e proteínas expressas na membrana dos tumores. Quando o mecanismo foi compreendido, concluiu-se que bloquear essa interação manteria o sistema imunológico ativado. Desenvolveram-se anticorpos específicos que impedem a ligação do receptor da célula de defesa com o seu ligante na célula tumoral. Quando isso ocorre, as células de defesa combatem o tumor como se ele fosse uma infecção - explica.
Mais medicamentos devem ser aprovados em breve
Os primeiros resultados dessa estratégia apareceram em pacientes com melanoma metastático, uma forma agressiva de câncer de pele para a qual a medicina não oferecia nenhuma alternativa eficaz. Com a imunoterapia, ocorreram regressões surpreendentes e prolongadas nos tumores de uma parcela considerável dos pacientes. Em um dos estudos, 53% dos doentes que receberam a dose máxima da medicação tiveram reduções de pelo menos 80% no tumor.
Com o sucesso no tratamento do melanoma, o interesse pela imunoterapia explodiu. E as boas notícias não param de vir dos centros de pesquisa. Em diferentes tipos de câncer avançado, nos quais já se havia tentado de tudo, os novos remédios ofereceram resultados sem precedentes. Pelo potencial de salvar vidas, a FDA, agência americana de medicamentos, abreviou os trâmites para a aprovação de imunoterápicos. Algumas medicações já foram liberadas. E um número muito maior, para variados tipos de câncer, deve estar disponível em breve.
- Em um ou dois anos, vamos ver a aprovação de vários desses medicamentos. Durante décadas, a imunoterapia foi vista com ceticismo por médicos e pesquisadores, mas hoje não existe área mais estimulante na oncologia - observa Gilberto Schwartsmann, chefe do serviço de oncologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
As origens
Saiba como surgiram as primeiras pesquisas sobre imunoterapia para tratar o câncer:
- Em 1987, pesquisadores franceses identificaram um novo receptor na superfície dos linfócitos T, uma célula do sistema imunológico. Esse receptor foi chamado de CTLA-4.
- O imunologista James Allison, da Universidade do Texas, descobriu que o CTLA-4 poderia refrear a ação das células T, impedindo o sistema imunológico de atacar. Ele especulou que bloquear o receptor poderia fazer o sistema imunológico atacar um câncer. Em 1996, Allison demonstrou que o uso de anticorpos contra o CTLA-4 era capaz de eliminar tumores em ratos.
- Também nos anos 90, um biólogo japonês descobriu uma outra molécula em células T, batizada de PD-1, que bloqueava a ação das células T. Logo após, Arlene Sharpe e Gordon Freeman, pesquisadores do Dana-Farber Cancer Institute, descreveram os ligantes do receptor PD-1, chamados PD-L1 e PD-L2, ampliando o conhecimento sobre o funcionamento do sistema imune e colaborando para o desenvolvimento de drogas nessa via.
- Os grandes laboratórios consideravam a imunoterapia uma linha com pouco futuro, mas um pequena empresa de biotecnologia norte-americana, a Medarex, adquiriu em 1999 os direitos do anticorpo para o CTLA-4.
- Em 2006, a Medarex começou a testar também em humanos anticorpo para a molécula PD-1. Foram estudados 39 pacientes com cinco tipos de câncer. Dois anos depois, tumores avançados de cinco pessoas diminuíram. Alguns pacientes viveram muito mais do que o esperado.
- Em 2010, o laboratório Bristol-Myers Squibb, que havia adquirido o Medarex, anunciou o primeiro resultado do anticorpo para o CTLA-4 com humanos. Pacientes com melanoma metastático que receberam o medicamento imunoterápico viveram em média 10 meses. Os que não o receberam viveram seis meses. Um quarto daqueles que receberam o anticorpo viveram pelo menos dois anos.
- Em 2011, a FDA, agência americana de medicamentos, aprovou o uso do anticorpo para o CTLA-4 para tratamento de melanoma metastático.
- Em 2012, pesquisadores da Johns Hopkins University e da Yale University revelaram o resultado do anticorpo contra o PD-1, que havia diminuído pelo menos pela metade o tumor de 31% dos pacientes de melanoma, 29% dos de câncer renal e 19% dos de pulmão.
- Em 2013, pesquisadores divulgaram que a combinação dos dois anticorpos havia provocado uma regressão rápida e profunda dos tumores de 31 doentes de melanoma.
- A partir dos bons resultados, teve início uma corrida para desenvolver novos anticorpos, estudar o uso combinado deles nos pacientes e testar a imunoterapia em diferentes tipos de câncer. Há uma infinidade desses estudos em andamento. Em vários tipos de tumor, inclusive em estágio muito avançado, os resultados são impressionantes. Espera-se a aprovação de uma série de medicamentos novos nos próximos dois anos.