*Cirurgião torácico e presidente da Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina
Júlia tinha 40 anos, um casamento que esboroara por desgaste, e do qual ela batera a porta sem uma sensação de perda massacrante, mas com aquele desconsolo de afeto desperdiçado num grande amor que poderia ter sido, pareceu que seria, mas não foi. Do rateio das culpas sobraram mágoas prolongadas a permear momentos fugidios de felicidade que ela, depois de tudo, desconfiava ser o máximo que se pode esperar de uma vida em comum, sem fantasias exageradas.
Lera em algum lugar que "muitos acreditam que resistir nos fortalece, mas, às vezes, é desistir que faz isso". E cansada de tentar, desistiu.
Uma carreira profissional invejável e uma filha maravilhosa eram motivos de sobra para recomeçar, e ela recomeçou.
A dor abdominal que não passou com a menstruação foi o primeiro sinal. Quando os exames confirmaram um tumor de útero, as notícias só pioraram, havia múltiplos nódulos nos pulmões, indicando a disseminação da doença.
Quando a quimioterapia fracassou, ela marcou uma consulta para discutir a possibilidade de um transplante, se é que isso era possível.
Durante a conversa ficou claro que ela já sabia que não, que o transplante está contraindicado em câncer, mas o que ela queria mesmo era conversar.
E conversamos muito, naquela e em outras consultas. Ela contente por ter encontrado um ouvido compassivo e eu fascinado com a oportunidade de conviver com aquela inesgotável usina de sensibilidade, inteligência e coragem. Comovedora coragem.
Um ano e meio depois, muito mais magra, com o rosto afilado e a arcada dentária proeminente, ela me disse com uma serenidade pungente:
- Acho que estou pronta.
Naquela última conversa ela relembrou a tarde em que um oncologista lhe dissera com a aspereza de arame farpado que ela devia se preparar para morrer em menos de dois anos. E as previsões dos experientes em geral se confirmam, principalmente as pessimistas.
Estabelecido o inevitável, ela encontrou forças para dar algum sentido ao tempo que lhe restava e viveu com uma intensidade absurda. Sepultou no peito todas as orfandades minúsculas que a vida lhe regalara, e baniu a inutilidade das queixas inconsequentes. Descobriu, enfim, que viver com plenitude transcende o registro dos calendários convencionais.
Quando lhe perguntei qual tinha sido a maior descoberta, ela confidenciou:
- Eu tive um vida cheia de preocupações fúteis até que me impuseram um prazo. Dali em diante vivi como viveria se pudesse recomeçar: sem nenhuma tolerância com a picuinha. Com o tempo marcado, só tem importância o que de fato é. Quando puder, ensine isso às pessoas!
Prometi que faria.
Na academia - Lições sobre o câncer
O colunista do Vida J. J. Camargo recentemente assumiu a presidência da Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina. Uma vez por mês, ele apresentará neste espaço o resumo das reuniões da entidade
- O professor Marcos Moraes, cirurgião oncológico do Rio e presidente da Academia Nacional de Medicina, foi o convidado a discorrer sobre o Estado Atual do Câncer no Brasil.
- Reconhecido como a segunda causa de morte, atrás apenas das doenças cardiovasculares, o câncer foi apresentado como um problema de saúde pública, a exigir uma política bem organizada no seu enfrentamento.
- Os índices de sobrevida crescentes nos mais variados tipos de tumores revelam a necessidade de um atendimento rápido e competente para que os pacientes que tiveram o diagnóstico mais precoce não percam a chance de cura.
- Dados do Ministério da Saúde sobre a distribuição do câncer por faixas etárias e a predominância de determinados tipos de tumores em certas regiões do país, revelam a alta incidência do câncer de pulmão no RS, não por acaso o principal produtor de fumo do país.
- Além dos cuidados à exposição ao sol, de uma dieta balanceada e rica em fibras, da prevenção da obesidade e do estímulo à atividade física regular, foram relatadas as iniciativas do Instituto Nacional do Câncer (Inca) na campanha antitabagismo, considerada essencial em qualquer programa de saúde pública.
- Atuando como comentarista pela Academia, o oncologista Algemir Brunetto ressaltou que, nos casos de câncer infantil, a chance de cura de um paciente tratado num hospital não especializado e sem protocolos é de 19%. Com cuidado ideal, num hospital especializado e seguindo protocolos estabelecidos, sobe para 70%.
- Gilberto Schwartzman alertou para a evidência de que, em 2030, o câncer ultrapassará a doença cardíaca como causa de morte e isso exigirá uma estrutura hospitalar qualificada.
- Valdir Pereira ressaltou que leucemias e linfomas apresentavam altos índices de recidiva 30 anos atrás, mas agora são manejados com a naturalidade de quem sabe que a maioria desses jovens e crianças sobreviverão para uma vida normal.
As reuniões da Academia ocorrem no último sábado do mês, às 10h, na sede do Cremers, na Avenida Princesa Isabel, 921. São abertas ao público e a entrada é franca.
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