É como se Fabrício Carpinejar, poeta e colunista de GZH, escrevesse cartas destinadas diretamente a quem tem em mãos seu mais novo livro, Manual do Luto - Todas as Dores do Mundo (Bertrand Brasil, 144 páginas, R$ 49,90), que será lançado neste domingo (3) na Bienal do Livro do Rio.
A inspiração para os textos veio do grupo intitulado Clube dos Corações Solidários, em homenagem aos Beatles. São 25 mil pessoas com as quais o escritor se comunica semanalmente, por e-mail, em iniciativa organizada por uma empresa do setor funerário.
"Viver é assustador", escreve Carpinejar, considerando as adversidades que atravessam todos os caminhos e a fragilidade do ser humano. "Se você ainda não sabe o que é perder alguém, não condene a duração de nenhuma saudade", afirma o autor no volume que trata das mais diferentes esferas da vida em que é sentida e lamentada a morte de um afeto.
Na quinta-feira (31), o escritor, recém-chegado, de Goiás, a Minas Gerais, onde cumpria sua sempre intensa agenda de compromissos, conversou por telefone com a reportagem.
Por que falar sobre o luto?
Porque é como se fosse uma invisibilidade. Você não nota quem está de luto. Só passa a reparar quando você entra em luto. É o que eu digo no livro. Se você se torna viúvo, você enxerga viúvos por toda parte. Se perde os pais, enxerga quem perdeu os pais por toda parte. E antes não conseguia enxergar. E você, quando tem uma perda, é prensado a se recuperar rapidamente. Não tem espaço para chorar, para refletir, para sentir saudade. Você não pode nem contar as histórias do outro, que soa como se fosse repetitivo, como se você tivesse que virar a página. Existe um hábito de quantificar a dor do outro pela proximidade. Mãe, pai, irmão, marido, esposa. E o luto tem a sua singularidade de acordo com o que foi vivido. Você pode sofrer por um amigo o que você não sofreu pelo pai ou pela mãe.
Você menciona, no livro, amigos que morreram. Quais foram suas maiores experiências com luto?
Não tive os avós vivos até o fim da minha infância. E eles foram sempre uma fonte de doçura, de acolhimento. Tanto que eu me esforço muito para guardar essas recordações do interior dos meus avós. É como se fosse um santuário porque tive pouco tempo de convivência. Tem os amigos, né? Sem sombra de dúvida. Tem os amigos dos pais. Os pais, a todo momento, estão indo a um velório. Eles se despedem aos poucos. É aquela sensação terrível de estar no velório de um amigo e olhar ao redor dos sobreviventes e pensar quem será o próximo.
É um revés da idade, né? Quanto mais a gente vive...
A minha preocupação era falar da morte sem falar especificamente de uma perda minha. Porque senão seria absolutamente biográfico. Eu não estaria falando da morte, estaria falando da minha perda. O que eu queria era meditar a respeito do sofrimento sem ter um envolvimento direto. O que costuma acontecer com livros que tematizam o luto é que você está falando ou de um filho que perdeu, ou de um pai, de uma mãe... Você não está falando do luto. Você está falando do seu processo. Não que não tenha legitimidade, claro que tem, mas eu queria um olhar diante de todas as dores do mundo.
"Qualquer um que enfrenta o luto passa a limpo a sua trajetória, relê os seus rascunhos, percebe o quanto já foi feliz sem saber e o quanto foi infeliz sem necessidade", você diz na apresentação do livro. Fale mais sobre isso.
Você repara o quanto sofreu antes por bobagem, o quanto discutiu ou brigou por orgulho e o quanto, de outro modo, foi feliz e nem tinha noção do quanto aquilo era valioso. A saudade vem só depois. A saudade é um marcador de páginas na releitura.
Você afirma que "a dor encolhe depois de passarem vários anos da despedida, mas não some". Luto é para sempre?
É incurável, não é uma doença. É para sempre. O luto seria reversível, cicatrizável, se você pudesse retornar a ser quem você era. E não dá. Você vai enxergar tudo diferente. É como se despertassem em você os olhos da sensibilidade. O coração torna-se uma córnea. Você sente tudo com extrema vulnerabilidade. A questão do tempo modifica. Quando não tem o luto, você apenas se interessa pelos momentos inteiros, pelos períodos redondos, pelos círculos fechados. Você não comemora dias, semanas ou meses. Você só se interessa pelos anos. Já quando você tem o luto, o tempo se modifica para as frações. Em dias você é capaz de realizar uma década. Você muda a sua intensidade, a sua postura diante do tempo. Primeiro, você não vai mais adiar nada. Você tem uma urgência que se transforma em sinceridade. Se você não gosta de alguém, vai dizer que não gosta dessa pessoa. Se não quer ir a um compromisso, não vai ter pudor nenhum de recusar. Você assume as suas escolhas sabendo que não vai mais tolerar mentira. O luto acaba com a mentira. Você não tem como disfarçar sofrendo. Não tem como disfarçar suas emoções. Não tem como despistar, não tem como fingir, não tem como simular.
Você contradiz uma ideia muito repetida, a de que o sofrimento faz a gente aprender. Você afirma que o sofrimento "nem sempre gera aprendizado. Você pode ficar muito pior do que era". Por quê?
A gente tem ideia de que o sofrimento vai nos tornar sábios. Não é verdade. Há sofrimentos absolutamente inúteis e dispensáveis. Perder um filho não traz lição nenhuma. É um destino cruel. É romantizar a dor. É querer transformá-la em filantropia emocional. Não tem como. Você vai viver à míngua. É um deserto. Você não terá a alegria de antes. A sua alegria é devorada pela saudade.