Quando os moradores do quilombo de Macanudos, em Rio Grande, souberam que seriam imunizados contra o coronavírus, a primeira reação foi de estranhamento. Habituados a serem esquecidos, pensaram que a intenção era testar a vacina nos negros descendentes de escravizados para depois aplicá-la nos brancos.
Uma das lideranças da comunidade, situada na Vila da Quinta, área periférica de Rio Grande, Claudia Mara Amaral, 45 anos, procurou as 35 famílias do quilombo para explicar a importância da vacinação. Desde que começou a pandemia, seis pessoas de Macanudos pegaram coronavírus, mas nenhuma ficou mal. Claudia Mara viu os moradores ressabiados com a intenção daquele gesto do poder público. Deixados de fora da campanha contra a gripe, de repente os quilombolas constavam entre os grupos prioritários no Plano Nacional de Imunização do Ministério da Saúde contra a covid-19.
— Tive dificuldades para convencê-los porque é uma coisa nova. Eles não estavam acreditando. Como o governo estava dando e o governo nunca deu nada pra ninguém... — diz Claudia Mara.
Na hora da vacina, muitos do que estavam contrariados acabaram cedendo. Foi em 29 de março que os moradores da Macanudos se prepararam para a primeira dose, destinada aos quilombolas maiores de 18 anos. Vera Luiza da Costa Bandeira, 66, preparou tudo para que a vacinação acontecesse num salão próximo à comunidade, com agentes municipais da cidade aplicando as injeções, para não causar aglomeração no posto de saúde.
A fila formada em frente ao salão por cerca de 60 dos 107 integrantes da Macanudos causou um burburinho nos arredores. Houve quem perguntasse por que os quilombolas estavam se vacinando contra o coronavírus, enquanto outros grupos, não. De acordo com a ordem do Plano Estadual de Saúde, eles começaram a ser imunizados depois dos idosos entre 80 e 84 anos e antes dos idosos entre 75 e 79.
Tive dificuldades para convencê-los porque é uma coisa nova. Eles não estavam acreditando. Como o governo estava dando e o governo nunca deu nada pra ninguém...
CLAUDIA MARA AMARAL
Liderança do quilombo de Macanudos, em Rio Grande
— A gente enfrentou preconceito. Questionavam por que pessoas de 18 anos de uma comunidade quilombola estão se vacinando, se não são idosos? Esses questionamentos que não aparecem com outros grupos. Mas, com pessoas pretas, esses questionamentos surgem — diz Charlene da Costa Bandeira, 28, uma das lideranças da Macanudos e filha de Vera.
Passada a maledicência, a Macanudos começou a comemorar a imunização. Demais integrantes que não haviam se imunizado naquele dia buscaram suas doses em outra data e, de acordo com Charlene, 90% do quilombo está vacinado, tirando as crianças. Agora eles aguardam a segunda dose, marcada para junho. Aposentada, Vera não vê a hora de estar devidamente imunizada.
— Para mim, a vacinação foi a coisa mais boa. Adorei. Meio caminho andado. Na segunda dose, então, vou sair pulando — diz.
Temos uma dívida histórica com essa população. Uma forma de pagarmos essa dívida é justamente proteger essas comunidades
DJENIFFER CORADINI
Responsável pelas políticas de equidade na 3ª Coordenadoria Regional de Saúde de Pelotas
De 140 comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Palmares, 46 ficam concentradas na região de Pelotas, que abrange municípios como Rio Grande, Canguçu e Piratini, entre outros. Esse número representa um terço de todos os quilombos do Estado. Responsável pelas políticas de equidade na 3ª Coordenadoria Regional de Saúde de Pelotas, Djeniffer Coradini entende que a inclusão dos quilombolas nos grupos prioritários da vacinação contra a covid-19 foi um passo fundamental para reconhecer a importância desses povos na história do Brasil:
— Os quilombolas são povos tradicionais do nosso país. A gente precisa proteger toda essa comunidade, justamente porque nessas comunidades está a memória do nosso país. Temos uma dívida histórica com essa população. Uma forma de pagarmos essa dívida é justamente proteger essas comunidades.
Em Pelotas, o quilombo Vó Elvira está entre os mais vacinados contra a covid-19. Um dos líderes da comunidade, Antonio Leonel Rodrigues Soares, 53, também enfrentou medo e resistência entre as 55 famílias da comunidade, situada no distrito de Monte Bonito, mas, ao lado de Eder Ribeiro Fonseca, 37, outra liderança, conseguiu reverter a maioria das opiniões.
— No início, alguns estavam desconfiados, tinha comentários de que a vacina dava reações. Mas, depois, o pessoal encampou. Viu que não tinha outro jeito — diz Antonio.
Para Eder, imunizar os quilombolas é garantir que eles permaneçam vivos, com toda sua cultura e história:
— A gente carrega uma sabedoria ancestral. É que nem uma liderança indígena quando morre. O que vai embora ali não é só um corpo, é toda uma sabedoria ancestral da mata.