Elas chegam aos poucos, sem intimidar. Depois de uma conversa e algumas brincadeiras, começam a tirar seringas e ampolas da caixa térmica. É aí que se inicia o trabalho das enfermeiras de convencer os moradores de rua de Cachoeira do Sul, cidade na região central do Rio Grande do Sul que já partiu para a imunização desse grupo prioritário, sobre a importância de tomar a vacina contra a covid-19.
É preciso jogo de cintura. São vários medos, desde o mais infantil, da aversão à agulha, até o mais difícil de superar, sobre os efeitos que a vacina pode provocar. Aliás, em uma população diariamente exposta aos perigos da rua, o receio da vacina é muito maior do que o receio do vírus.
— Não morri fumando crack, por que vou morrer de corona? — questiona um dos moradores de rua, de 32 anos.
Muitos escondem o medo atrás de uma piada.
— A gente não pega (o vírus) porque tá todo mundo com álcool na veia — diz outro de 27 anos, fazendo todos os outros darem risada.
Dos cinco que estavam na praça Borges de Medeiros, primeira parada das enfermeiras na manhã de quinta-feira (20), apenas um recusou a injeção. O outro fez gracinhas até ceder. Dois já haviam sido imunizados com a primeira dose, que começou a ser distribuída entre os moradores de rua de Cachoeira do Sul em 12 de maio.
— Essa vacina... por que me doeu o braço? — pergunta um de 31 anos, na rua há 12.
É um comportamento contraditório. Eles dizem que não têm medo do vírus, mas usam máscaras. Um deles, por exemplo, recusou as cirúrgicas oferecidas pelas enfermeiras porque já havia comprado uma de tecido. Quando podem, também passam álcool em gel nas mãos.
— A gente sabe que tem que usar máscara. Eu, ainda por cima, asmática... — diz uma mulher de 34 anos, na rua desde os 13.
Se estão sob efeito de álcool ou droga, é comum recusarem a injeção. Bate o temor de que, misturada a outras substâncias, o imunizante dê uma reação adversa.
— Eles têm medo de morrer, sim, mas a dependência química e o alcoolismo são um vício, precisam ser tratados — diz a enfermeira Paola Brendler.
É ela que vai à frente do grupo de enfermeiras de Cachoeira do Sul no que chamam de busca ativa aos moradores de rua, abordando os grupos e criando intimidade. Especializada em saúde mental e habituada a trabalhar com viciados, Paola entende que, antes de mostrar a seringa, é preciso atar um laço.
— O vínculo com eles, esse é o segredo. E não mentir. Não pode mentir. Tem que trocar uma ideia, entender eles, ajudar, e não mentir. Se chegar mentindo, falando que vai fazer alguma coisa e não faz... nunca mais. Eles não esquecem. Se perder a confiança deles, acabou o vínculo. Daí nosso trabalho vai por água abaixo — diz.
As enfermeiras percorrem praças, becos e vilas para vacinar os moradores de rua. Sabem os locais em que eles permanecem e quantos devem ser imunizados: em Cachoeira do Sul, são 70. Até agora, 40 já receberam a primeira aplicação. Não se amedrontam e vão até o Beco dos Trilhos, um dos principais pontos de tráfico da cidade, onde percorrem vielas de chão batido para chegar até três que devem ser imunizados.
Do meio de um matagal cheio de lixo, sai uma jovem de 27 anos. Não precisou de muito para ser convencida, nem reclamou da picada no braço.
— Coisa bem boa a vacina. Mas não vai proteger totalmente — diz, ciente de que precisa tomar a segunda dose para garantir a imunização completa.
Eles estão de porta em porta, de loja em loja, estão na rua. Podem contaminar as outras pessoas. É por eles e também pelos outros
PAOLA BRENDLER
ENFERMEIRA DE CACHOEIRA DO SUL
Do mesmo mato, um homem de 41 anos faz um aceno negativo às enfermeiras e diz que vai se vacinar em outro momento. Cita o medo da agulha, coloca a vacina em dúvida dizendo que, certa vez, se vacinou contra a gripe e ficou gripado logo em seguida, e garante que toma certos cuidados com o coronavírus, como não dividir o copo da caipirinha.
— Prefiro tirar foto a tomar injeção — diz, posando para a câmera.
Para Paola, garantir a imunização dos moradores de rua é mais uma forma de segurar o número de contágios.
— São pessoas iguais a gente. Sei que fizeram a escolha errada, mas quem somos nós? Querendo ou não, eles estão de porta em porta, de loja em loja, estão na rua. Podem contaminar as outras pessoas. É por eles e também pelos outros — diz Paola.
A vacinação contra o coronavírus em moradores de rua ainda está distante da maioria dos municípios gaúchos. De acordo com a Secretaria Estadual da Saúde (SES), apenas 232 pessoas incluídas nesse grupo prioritário já receberam a primeira aplicação.