A descrição de Lívia Dandolini Brum, dois anos, feita pelo pai, Douglas Brum, 25 anos, foi repetidamente interrompida pelo choro. O autônomo, morador de Capela de Santana, no Vale do Caí, perdeu a filha para a covid-19 na última segunda-feira (19), depois de um período de internação hospitalar da criança, que tinha passado por cirurgia no coração e tinha síndrome de Down.
O caso traz à tona a questão do que se sabe sobre um risco maior de mortalidade entre pessoas com a condição. Neste ano, um estudo com 1.046 pacientes com síndrome de Down e publicado na revista EClinical Medicine mostrou que adultos desse grupo, com mais de 40 anos, passam a ter três vezes mais chances de morrer de infecção por coronavírus do que os demais quando hospitalizados. A mortalidade para aqueles abaixo dessa faixa etária é menor, mas ainda um pouco maior em comparação com a população que não tem síndrome de Down. Dados específicos relacionados a crianças com Down e a covid-19 são mais escassos.
O caso de Lívia
A história da pequena Lívia repete aspetos de uma parcela das pessoas com síndrome de Down: alterações no sistema imune e anomalias cardíacas. Logo ao nascer, Lívia precisou passar por um procedimento no coração que a deixou 45 dias internada no hospital. Depois disso, conta o pai, levou uma vida normal para sua idade. Caminhava, falava algumas coisas sem dar pistas da sua cardiopatia.
Até que, no final de 2020, Brum e a esposa, Osiane Dandolini Brum, 29 anos, começaram a notar algumas mudanças na menina, que estava muito chorosa.
— No dia 4 de janeiro, fiz uma consulta de rotina no Instituto de Cardiologia, em Porto Alegre, e já baixaram ela. Ela passou por uma cirurgia de nove horas e acabou tendo um edema pulmonar. Ela foi entubada e eles não conseguiam extubá-la — relembra o pai.
O procedimento foi para a correção de um defeito no septo interventricular. Em um coração normal, o septo interventricular separa o sangue com pouco oxigênio daquele com muito oxigênio.
— Se esse septo está aberto, mistura os dois tipos de sangue. Esse defeito é muito grave, pois o coração não consegue enviar sangue oxigenado para o corpo — explica Lavínia Schuler-Faccini, professora do Serviço de Genética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Em meados de fevereiro, Lívia foi transferida para o Hospital Conceição, onde passou por uma traqueostomia e começou a se recuperar bem. Cerca de um mês depois, foi levada para o quarto, onde "voltou a ser a menina que era antes", conta o pai. Um tempo depois, a criança foi infectada pelo coronavírus e precisou ser levada, mais uma vez, para uma unidade de terapia intensiva (UTI):
— Ela ficou muito ruim. Teve 40°C de febre e dali para a frente só piorou. Os pulmões ficaram muito comprometidos e o coração já doente não tinha mais força.
Lívia morreu na última segunda, depois de uma luta desenfreada das equipes para salvá-la.
— Todos tinham uma entrega desesperada. Quando ela faleceu, eles nos abraçaram, choraram conosco. Ela foi uma criança que nos ensinou o amor. Hoje, é um anjinho — diz, entre lágrimas, pai.
Possíveis causas que relaciona m a condição à doença respiratória
A síndrome de Down é uma alteração genética, na qual os indivíduos têm 47 cromossomos em suas células em vez de 46, como a maioria dos humanos, explica Lavínia:
— Ter um cromossomo a mais desregula o balanço entre os genes. Essas pessoas vão ter algumas alterações que podem as predispor mais à covid-19.
Essas modificações, tanto esqueléticas quanto no sistema imunem fazem com que crianças com Down sejam mais suscetíveis às infecções respiratórias, como é o caso da covid-19. Além disso, acrescenta o médico Osvaldo Artigalás, geneticista do Hospital da Criança Conceição, metade delas têm cardiopatia congênita, como Lívia.
— Outro fator importante é que eles têm propensão ao sobrepeso e à obesidade. Em adultos, a síndrome de Down aumenta alguns biomarcadores inflamatórios, ou seja, eles têm tendência a uma inflamação maior, a respostas inflamatórias mais exacerbadas, que é o que vemos na covid-19— resume Artigaláso.
Somam-se a todas essas questões os aspectos da própria condição. Muito provavelmente, acredita Lavínia, a desregulação causada pelos genes do cromossomo 21 influencia na evolução ruim da covid-19.
Para Lavínia, a mortalidade três vezes maior entre adultos com Down do que o esperado no restante da população pode dar pistas sobre o comportamento nos menores.
— Isso sugere que a mortalidade também seja maior entre as crianças — completa Lavínia.
Vacinação incluída entre grupos prioritários
Por todas essas razões é que as pessoas com síndrome de Down foram incluídas no grupo prioritário para a vacinação contra a covid-19 pelo critério de comorbidades, que deve iniciar logo após a etapa dos idosos. Destaca-se que as crianças, nesse momento, no entanto, não devem receber o imunizante, pois ainda não houve liberação delas para faixas etárias com menos de 18 anos. Isso porque ainda não existem estudos conclusivos sobre segurança na aplicação da imunização para esta faixa etária.