As notícias falsas que infestam as redes sociais não surgiram com a pandemia de coronavírus, mas ganharam volume assustador neste 2020 de crise sanitária global. Enquanto a corrida pela aprovação de imunizantes contra a covid-19 mobiliza a população, autoridades e comunidade científica de todo o mundo, as fake news transitam com facilidade entre certos grupos, como os de apoiadores de movimentos antivacina, e respingam além, gerando dúvidas e até criando absurdas “certezas”.
Depois de enfrentar a doença, o presidente Jair Bolsonaro falou que não tomará a vacina porque já pegou o vírus — a duração da imunidade ainda é uma incógnita para médicos e pesquisadores — e até debochou, alegando que “se você virar um jacaré, é problema seu”, manifestação que vem incentivando a criação de uma infinidade de memes na internet. Ao mesmo tempo, líderes como Joe Biden, presidente eleito dos Estados Unidos, receberam a primeira dose diante das câmeras, na tentativa de encorajar os temerosos.
Vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações, Isabella Ballalai menciona o investimento de detratores de vacinas na propagação de mensagens erradas, produzindo vídeos com supostos pesquisadores estrangeiros que dispõem até de legendas em português.
— Nunca vi tanta fake news tão bem bolada. Fica claro que não é ação de uma pessoa só — comenta a médica pediatra, citando documento da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) que aponta crescimento de 60% nos conteúdos de oposição às imunizações neste ano. — Isso significa uma população passando por uma situação de medo, de ansiedade, de dúvidas, que é o cenário que nos impõe a covid-19, em vez de apoio e suporte para que as pessoas enfrentem isso com mais tranquilidade — acrescenta.
Luiz Gustavo Almeida, microbiologista e coordenador de projetos pedagógicos do Instituto Questão de Ciência, descreve uma mistura de “ridículo, má interpretação de estudos e exagero” nas manifestações, que muitas vezes contam com o apoio de artistas famosos.
— E as autoridades não vêm a público falar o contrário. As autoridades teriam que ter um posicionamento mais forte para isso não ganhar coro — critica Almeida.
Confira, a seguir, os comentários de Isabella e Almeida sobre uma série de fake news que circulam pelas redes.
"As vacinas contra a covid-19 não são seguras"
Falso. Nenhuma das vacinas é licenciada sem que o fabricante e os pesquisadores envolvidos no estudo apresentem os dados de segurança e eficácia do imunizante. Pediatra e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Isabella Ballalai completa:
— Não podemos afirmar que todas as vacinas em estudo são seguras, mas, sim, que todas as licenciadas serão seguras.
No Brasil, o aval é de responsabilidade da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
“A CoronaVac não é confiável porque é chinesa”
Falso. Críticos do Partido Comunista Chinês, do comunismo em geral e até das mercadorias produzidas a baixíssimo custo na China e exportadas para o mundo inteiro recorrem a esses argumentos para tentar colar na CoronaVac a imagem de suspeição e ineficácia. O fato de Wuhan ter sido a cidade onde o Sars-CoV-2 foi descoberto também dá munição aos detratores do imunizante desenvolvido pela farmacêutica Sinovac.
A ciência produzida em território chinês, destaca Luiz Gustavo de Almeida, do Instituto Questão de Ciência, é de ponta, fato desconhecido por grande parte do público leigo.
— As vacinas da covid-19 estão sendo exaustivamente observadas e julgadas por toda a comunidade científica — garante o microbiologista.
"Vacinas desenvolvidas na China vêm com um nanochip misturado. Depois que isso estiver em seu organismo, você nunca mais será livre. Cientistas poderão controlá-lo e, com o 5G, criar doenças, diminuir sua imunidade, saber sua localização e muito mais"
Falso. Para se ter ideia do absurdo, é preciso entender a dimensão das coisas.
— De que tamanho é o vírus? E o DNA do vírus? O menor chip disponível hoje é umas 2 mil vezes maior do que um vírus. Entupiria a seringa e a agulha, impedindo a saída da dose — esclarece Almeida.
"Imunizantes para a covid-19 podem infectar as pessoas com o coronavírus"
Falso. A “inspiração” para esta crença distorce uma prática científica. Uma das tecnologias mais conhecidas na produção de vacinas envolve o chamado vírus atenuado — ele não é capaz de provocar a doença, mas se trata de um micro-organismo vivo.
Em laboratório, esse vírus é muito bem selecionado, estudado e testado, garante Almeida. Estudiosos monitoram o cultivo até o ponto em que se consegue obter uma variante sem risco de causar a enfermidade à qual se destinará o imunizante.
— Nenhuma das vacinas para covid-19 que estão em fase 3, mais próximas de serem licenciadas, usa vírus vivo. Então, é zero risco de infecção pelo coronavírus — assevera Isabella.
“Querem modificar o nosso DNA com uma vacina"
"Vacinas podem causar danos irreversíveis ao DNA"
"O DNA e o RNA desses imunizantes nos transformarão em seres geneticamente modificados"
Tudo falso. O DNA, que corresponde ao código genético de cada pessoa — armazenando, portanto, todas as nossas características —, está muito bem protegido no núcleo das células. Não é qualquer agente que pode chegar até lá e modificá-lo. O RNA, por sua vez, é uma molécula bem parecida com o DNA, mas com bases diferentes, não sendo tão estável e se degradando facilmente.
As vacinas fabricadas com o chamado RNA mensageiro, como as da Pfizer/BioNTech e da Moderna, já aprovadas para aplicação em diversos países, levam ao organismo o “recado” para que seja produzida determinada proteína, mas não chegam ao núcleo onde o DNA se encontra protegido.
Dentro das nossas células, os ribossomos criarão as proteínas que, em seguida, serão apresentadas ao sistema imunológico. Nossas defesas reconhecem que aquela proteína recém-chegada é uma novidade e não faz parte do nosso organismo e que, portanto, deve ser combatida — aí é que surgem alguns efeitos, como a febre, o que prova que o corpo está funcionando muito bem ao identificar o “invasor”.
— Dentro das células, os ribossomos vão criar as proteínas e apresentá-las ao sistema imune: "Fica alerta, isso não é do nosso corpo" — explica Almeida. — Ninguém será geneticamente modificado com uma vacina dessas. O RNA não vai nem chegar próximo do DNA, que está ali compactadinho, no núcleo — tranquiliza o pesquisador.
Depois desta "aula", o organismo terá aprendido a identificar a proteína do Sars-CoV-2, combatendo-a no caso de eventual infecção.
Presidente Jair Bolsonaro: "Eu não vou tomar. Já tive o vírus, já tenho anticorpos"
Não é bem assim. Surgem pelo mundo, e inclusive no Brasil, casos de reinfecção por coronavírus. Isabella Ballalai destaca que ainda há muito o que se aprender sobre a doença para que se possa determinar o real impacto disso.
— Esta é uma grande preocupação. Tudo indica que ter covid-19 não protege contra um próximo episódio de covid-19. Estamos vendo pessoas que tiveram um caso leve e que, na segunda infecção, que não era esperada, tiveram um quadro grave. A doença não protege — adverte a vice-presidente da SBIm.
A incidência de novas infecções não permite afrouxar as medidas preventivas.
— Não podemos bobear. Deixar de se vacinar porque teve covid-19? Não. Deixar de usar máscara e manter distanciamento porque já teve covid-19? Não. Vem a vacina, mas os cuidados continuam iguais — recomenda Isabella.
"Não é necessário vacinar toda a população. Se muitas pessoas se vacinarem, eu não preciso"
É preciso atentar para pontos fundamentais desta explanação. Na campanha mundial de vacinação que acaba de começar, gestantes e crianças não estão incluídas porque ainda não há testes suficientes que garantam sua imunização segura.
As doses foram desenvolvidas e testadas para reduzir as internações hospitalares e a ocorrência de quadros severos de covid-19, priorizando, em um primeiro momento, integrantes dos grupos de risco, como idosos, doentes crônicos e profissionais da saúde. Quem tomar as injeções estará se prevenindo contra a covid-19 e, provavelmente, de transmitir o coronavírus para outras pessoas.
Para que se atinja a chamada imunidade de rebanho, forma de proteção indireta contra doenças infecciosas que se estabelece quando determinada parcela da população se torna imune a essas enfermidades, é preciso que entre 65% e 75% dos habitantes de cada país sejam vacinados. Esse percentual varia de acordo com particularidades locais e depende muito da eficácia do imunizante aplicado. O uso de vacinas com menor eficácia exige que mais indivíduos sejam vacinados.
“A vacina contra a gripe pode aumentar o risco de complicações em caso de infecção por coronavírus”
Totalmente falso, assegura Isabella. O risco mais elevado está justamente associado à falta do imunizante contra a gripe:
— O que aumenta o risco de complicações é ter gripe, e não a vacina contra a gripe.
A questão logística preocupa a médica. Para Isabella, tudo indica que haverá campanhas simultâneas de aplicação das doses contra a gripe e também para a covid-19:
— Não podemos deixar de atingir as metas nas nossas coberturas. Uma não exclui a outra, são duas vacinas diferentes. O difícil é que, entre uma e outra, é preciso esperar 30 dias. Não se pode fazer a vacina da gripe junto da vacina contra a covid-19.
"Vacinas da covid-19 contêm a enzima luciferase, que está associada a Lúcifer"
Nenhuma das vacinas em estudo atualmente deverá conter a luciferase. Trata-se de uma enzima útil em estudos e experimentos de laboratório porque, como emite luz, facilita seu rastreamento pelos cientistas. É como se fosse um sinalizador "iluminando" os caminhos.
Quanto às associações com a figura do demônio, trata-se de uma apelação a crenças religiosas e místicas para amedrontar a população e desestimular a imunização.
"Vacinas são produzidas com células de fetos abortados e tumores"
Em certa ocasião, há mais de 40 anos, células embrionárias de um feto abortado legalmente, de acordo com a lei holandesa, foram utilizadas para o cultivo de linhagens celulares. Esse recurso não é mais empregado hoje em dia.
Diversas vacinas ainda precisam de culturas celulares para serem produzidas, mas se trata de células que foram imortalizadas em laboratório e estão sempre se dividindo. Essas células estão continuamente se multiplicando em tubos de ensaio, fora do corpo de qualquer animal, sendo necessário apenas que recebam nutrientes. Dessa forma, pesquisadores não precisam mais recorrer aos locais de origem, como, por exemplo, células embrionárias ou de órgãos de outros animais.
Quanto aos tumores, um tipo de célula tumoral ainda é usado em laboratório, mas não para a produção de vacinas, ressalta o microbiologista Luiz Gustavo de Almeida. O objetivo é verificar a toxicidade de alguns produtos.
“A imunização contra a covid-19 pode deixar mulheres inférteis”
A bula do imunizante resultante da parceria entre Pfizer e BioNTech diz que os fabricantes não dispõem de dados sobre as causas da infertilidade em humanos. Eles não têm essas informações, segundo Almeida, porque não testaram essa possibilidade com o imunizante, mas esse aspecto precisa estar contemplado na bula.
— Como a Pfizer e a BioNTech não testaram isso ainda, não podem dizer que não causa infertilidade — diz o microbiologista.
Há relatos de voluntárias dos testes clínicos de fase 3 das vacinas da Pfizer/BioNTech e da Moderna que engravidaram.
Fontes: Isabella Ballalai, pediatra e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Luiz Gustavo de Almeida, microbiologista e coordenador de projetos pedagógicos do Instituto Questão de Ciência, e Instituto Butantan