Conteúdo verificado: tuíte afirma que dois médicos brasileiros provaram cientificamente que uma vacina precisa de, no mínimo, dez anos de pesquisa para ser considerada segura e eficaz.
É falso que os médicos brasileiros Nise Yamaguchi e Anthony Wong tenham provado cientificamente que uma vacina precisa de no mínimo dez anos de pesquisa para ser considerada segura e eficaz, conforme afirmou um blogueiro no Twitter.
O Comprova não encontrou qualquer indício de que os médicos tenham feito tais provas. Só foi encontrada uma entrevista à rádio Jovem Pan em que ambos falam sobre efeitos colaterais e tempo de aprovação de vacinas, mas não há provas de que haja um tempo mínimo.
Tempo, na verdade, não é um dos fatores considerados nos protocolos de aprovação de vacinas tanto da Agência Nacional de Vigilância Sanitária do Brasil (Anvisa) quanto da Food and Drug Administration (FDA), autoridade sanitária dos Estados Unidos. Além disso, o órgão norte-americano aprovou, no final de 2019, uma vacina contra ebola desenvolvida em cinco anos.
O Comprova tentou entrar em contato com Yamaguchi e Wong, que já teve algumas das suas falas analisadas pelo Comprova, mas não teve retorno até o fechamento desta verificação.
Como verificamos?
Por meio de pesquisa, a equipe apurou os perfis das redes sociais dos médicos citados e do blogueiro que publicou o tuíte, principalmente o Instagram, Twitter e Linkedin. Além disso, foram analisadas entrevistas e postagens de Wong e Yamaguchi realizadas durante a pandemia, relacionadas aos cuidados recomendados para evitar a proliferação do vírus.
Por e-mail, questionamos a Anvisa sobre os procedimentos para a aprovação de uma vacina, se haveria algum tempo mínimo requerido e se a data de 10 anos fazia algum sentido. As mesmas perguntas foram feitas à norte-americana FDA também por e-mail, em inglês.
Por telefone, contatamos ainda Evaldo Stanislau, infectologista da Universidade de São Paulo (USP) para falar sobre produção de vacinas. Ele respondeu por WhatsApp.
Também tentamos contato com Anthony Wong e Nise Yamaguchi por e-mail e telefone, mas não obtivemos resposta.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 6 de novembro de 2020.
Verificação
Tempo de aprovação
Ao Comprova, a Anvisa afirmou, por e-mail, que não existe tempo delimitado para a aprovação de uma vacina ou medicamento. “O que existe é a exigência de demonstração de segurança e eficácia por meio de pesquisas clínicas que forneçam dados suficientes para esta análise”, explica a agência.
O órgão afirma que há uma “exaustiva lista para regulamentação e registro”, mas que não inclui correlação com o tempo. Em seu site, a Anvisa explica as etapas que as indústrias devem seguir para registro do imunizante para covid-19: duas são pré-testes (pesquisa para identificação de candidatos e estudos clínicos com os selecionados após testes com animais) e três fases de testes em humanos.
Atualmente, três das cinco vacinas testadas no Brasil (Oxford, CoronaVac e da Pfizer com a BioNTech) estão na terceira fase, de estudo clínico de eficácia — as outras duas estão com as pesquisas paradas. Não há qualquer menção a um tempo mínimo necessário para qualquer uma das etapas.
Da mesma forma, a FDA, órgão equivalente à Anvisa nos Estados Unidos, também afirmou, por e-mail, que não estipula um tempo mínimo de pesquisa para a aprovação de uma vacina. A agência norte-americana também estabelece um estudo com três fases de testes em humanos antes do registro.
“Em qualquer estágio dos estudos com humanos ou animais, se os dados levantarem preocupações significativas sobre a eficácia ou a segurança [do imunizante], o FDA poderá requerer informações ou estudos adicionais ou poderá suspender o estudo em andamento”, explica a agência.
O que diz o especialista
O infectologista Evaldo Stanislau, pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e membro de diretoria da Sociedade Paulista de Infectologia (SPI), também afirmou que esse critério não existe.
— Os estudos têm fases definidas de desenvolvimento para demonstrar a eficácia e segurança. Após a fase 3 (onde várias vacinas estão ), se aprovadas e registradas, podem ser comercializadas sem restrições — explica o infectologista.
Segundo ele, após a aprovação, há ainda uma fase posterior, com observação na vida real, como ocorre com qualquer fármaco. Se há qualquer intercorrência, as autoridades sanitárias devem ser avisadas. É o que se chama de “farmacovigilância”.
— A depender de ocorrerem reportes – e do tipo de reporte –, isso pode demandar ações de correção ou restrição. Independente da farmacovigilância, o próprio produto pode ser aprimorado no pós-comercialização pelo próprio fabricante. E isso deverá ocorrer —afirma Stanislau.
Pode ocorrer, por exemplo, de uma vacina ser registrada e lançada com duas doses e, em algum momento, ser aprimorada para apenas uma dose.
— A afirmação original, do jeito que é colocada, está incorreta e, mais do que isso, tenta comprometer um processo sério e regulado pelas autoridades sanitárias — conclui o médico.
Vacinas produzidas em menos de 10 anos
Apesar de não haver um tempo mínimo, a produção de vacinas geralmente leva anos e depende de muitos fatores — desde o próprio vírus que se quer combater a elementos externos, como interesses econômicos e regionais, mas há registro de vacinas produzidas em menos de 10 anos.
A Ervebo, primeira vacina contra a ebola aprovada pela FDA, em dezembro de 2019, levou cerca de cinco anos para ser produzida. Apesar de o vírus ter sido descoberto na República Democrática do Congo (então Zaire) em 1976, a pesquisa para a vacina fabricada pela Merck começou em 2014, durante a epidemia no país africano entre 2013 e 2016. Outras tantas tentativas em décadas anteriores falharam.
A vacina contra a caxumba também foi descoberta em um período inferior de pesquisa. Apesar de seu vírus ter sido isolado em 1945, o médico Maurice Hilleman levou apenas quatro anos desde o início da pesquisa à aprovação, em 1967. Hilleman, que trabalhava na indústria farmacêutica e já tinha desenvolvido outros imunizantes, interessou-se pela doença depois que sua filha de cinco anos a contraiu. Essa história é contada pela rede britânica BBC.
A vacina do sarampo também foi descoberta e aprovada em menos tempo. Seu vírus foi isolado em 1954 e a vacina, licenciada pela FDA em 1963, nove anos depois, como mostra este infográfico da revista Superinteressante.
Quem são os médicos citados
Os médicos citados no tuíte do jornalista são Antony Wong, médico pediatra e toxicologista, e Nise Yamaguchi, diretora da Sociedade Brasileira de Cancerologia (SBC). Diferentemente do que diz a publicação no Twitter, nenhum dos dois comprovou que uma vacina precisa de dez anos para ser produzida.
Na entrevista à rádio Jovem Pan, Wong trata os possíveis riscos da vacina e exemplifica a demora para que a eficácia e segurança de sua aplicação sejam provadas:
— A vacina que foi mais curta (para ser feita) foi a de caxumba, que demorou quatro anos. A vacina de sarampo levou nove anos, a vacina de Ebola levou cinco anos só para ser desenvolvida e mais cinco para ser aprovada. Não é só fazer e pronto. Isso leva meses, anos… Até que os órgãos reguladores aprovem uma vacina segura. Nunca houve na história da humanidade pronta nos próximos meses, como estão dizendo — declarou.
Na mesma entrevista, Yamaguchi citou possíveis riscos que poderiam ser causadas por uma vacina contra a covid-19.
— Sabemos que as vacinas estão sendo testadas há pouquíssimos meses, então os efeitos colaterais tardios ainda não tem tempo de ser avaliados. O tempo é necessário para que os efeitos colaterais sejam estruturados — afirmou.
Wong já teve uma fala checada — e desmentida — pelo Comprova recentemente. Em entrevista à jornalista Leda Nagle, o médico afirmou que “nenhuma vacina de coronavírus passou pela fase pré-clínica”.
Em outras entrevistas encontradas durante a apuração, Yamaguchi, por sua vez, mostrou duas preocupações relacionadas à pandemia: a primeira seria a preocupação com as pessoas que são mais vulneráveis à covid. Já a segunda é voltada para a segurança dos pacientes ao questionar o tempo de pesquisa e testes das vacinas em andamento, além da falta de conhecimento sobre os efeitos colaterais. Além disso, como Wong, ela também afirmou, de forma incorreta, que algumas das vacinas não passaram pela fase pré-teste.
Quem é o blogueiro
Oswaldo Eustáquio, que compartilhou o conteúdo falso, é conhecido por ser um blogueiro bolsonarista e se apresenta como jornalista investigativo. Na descrição de seu perfil no Twitter, apresenta a numeração da sua DRT, Delegacia Regional do Trabalho, que o habilita a trabalhar como jornalista.
Foi investigado na Operação Lume, inquérito que apura a promoção de atos antidemocráticos favoráveis ao fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF), a mesma operação em que Sara Giromini, que adota o pseudônimo de Sara Winter, foi presa em Brasília. Depois disso, passou a se apresentar como “censurado pelo STF.”
Em fevereiro deste ano, Eustáquio foi condenado a pagar uma indenização de R$ 15 mil por danos morais ao jornalista Glenn Greenwald após publicar que Glenn mentira ao pedir visto de urgência para seus filhos conhecerem a avó, que estava com câncer e morreu em dezembro. O ex-deputado federal Jean Wyllys também abriu um processo contra o blogueiro.
Por que investigamos?
Em sua terceira fase, o Comprova verifica conteúdos suspeitos que tenham viralizado nas redes sociais tratando sobre políticas públicas do governo federal ou sobre a pandemia de covid-19.
O post verificado aqui, com 8,4 mil curtidas e cerca de 2,1 mil compartilhamentos no Twitter, desinforma ao afirmar que existe um tempo mínimo para aprovação de uma vacina e traz insegurança quanto às vacinas que estão sendo testadas atualmente pelo mundo – visto que, caso aprovadas em 2020 ou 2021, todas terão tempo de pesquisa inferior a dez anos. Ao citar o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que também já questionou a velocidade de pesquisa das vacinas, o post desacredita pesquisas científicas em prol de uma visão política.
O Comprova tem verificado uma série de postagens que questiona a eficiência das vacinas, como uma corrente que compara a letalidade da covid-19 à taxa de efeitos colaterais da vacina CoronaVac, outra que afirma que vacinas contra o vírus podem causar câncer, danos genéticos e “homossexualismo” e outra que afirma que imunidade de rebanho seria mais eficiente do que vacinação.
Falso, para o Comprova, é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma mentira.
Projeto Comprova
Depois de um período especial de 75 dias dedicado exclusivamente à verificação de conteúdos suspeitos sobre o coronavírus e a covid-19, o Projeto Comprova começou em 10 de junho a terceira fase de suas operações de combate à desinformação e a conteúdos enganosos na internet. O objetivo da iniciativa é expandir a disseminação das informações verdadeiras.
Nesta terceira etapa, o Comprova vai retomar o monitoramento e a verificação de conteúdos suspeitos sobre políticas públicas do governo federal e eleições municipais, além de continuar investigando boatos sobre a pandemia de covid-19. Fazem parte da coalizão do Comprova veículos impressos, de rádio, de TV e digitais de grande alcance.
Este conteúdo foi investigado por Alma Preta, Favela em Pauta e UOL verificado por Folha, GZH, Jornal do Commércio, Jornal Correio e Rádio Band News FM.
É possível enviar sugestões de conteúdos duvidosos e que podem ser verificados por meio do site e por WhatsApp (11 97795-0022). GZH publicará conteúdos checados pela iniciativa. O Comprova tem patrocínio de Google News Initiative (GNI), Facebook Journalism Project, First Draft News e WhatsApp e apoio da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). A coordenação é da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).