O primeiro caso oficial de reinfecção no Brasil, confirmado pelo Ministério da Saúde nesta quinta-feira (10), despertou mais uma vez a dúvida: quais as chances de uma pessoa se contaminar mais de uma vez por covid-19? GZH conversou com três especialistas – um médico infectologista, um virologista e uma biomédica – para sanar as dúvidas mais frequentes. Confira:
Quem é oficialmente a primeira reinfectada do Brasil?
Uma profissional da saúde de 37 anos, moradora de Natal, Rio Grande do Norte, e que trabalha também na Paraíba. Ela teve dor de cabeça, dor abdominal e coriza em 17 de junho, fez o teste PCR e o resultado saiu positivo. Em outubro, voltou a ficar doente (fraqueza, dores musculares, dor de cabeça e perda de paladar e olfato) e, mais de 110 dias depois da primeira infecção, o resultado do segundo PCR saiu positivo.
A Secretaria da Saúde do Rio Grande do Norte informou, em nota, que ambas as amostras foram enviadas para sequenciamento genético (investigação da “identidade” do vírus) na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro. Cientistas confirmaram que os vírus eram de linhagens diferentes.
Segundo o governo do Rio Grande do Norte, ainda há no Estado cinco casos de reinfecção em investigação. As autoridades pedem que a população use máscaras e mantenha o distanciamento social.
O que é reinfecção?
A reinfecção acontece quando uma pessoa se contamina com o vírus, se recupera e, um tempo depois, novamente adquire o vírus e adoece. Oficialmente, é preciso que o vírus seja de uma cepa (linhagem) diferente, mas especialistas afirmam que, na prática, a reinfecção pode ocorrer pelo mesmo vírus que contaminou uma pessoa antes, após a imunidade ter acabado.
Quanto tempo dura a imunidade contra o coronavírus?
Não há certeza sobre isso porque cada organismo varia, o vírus é novo e mais de um estudo aponta um prazo diferente. Não se sabe ainda o nível mínimo de anticorpos necessários para evitar uma infecção.
O Centro de Controle e Prevenção a Doenças dos Estados Unidos (CDC) sugere que, entre 45 e 89 dias após uma infecção sintomática, já é possível apontar um caso de reinfecção. Se a infecção for sem sintomas, a agência norte-americana sugere que é possível haver recontaminação a partir de 90 dias. Neste momento, autoridades, inclusive o protocolo do Ministério da Saúde, usam o prazo de 90 dias como referência para classificar uma reinfecção, independentemente do quadro da doença apresentada pelo paciente no primeiro episódio.
Análise feita por cientistas de diferentes instituições americanas sob a liderança de especialistas da Universidade Stanford, na Califórnia (EUA), indicou que não há imunidade natural permanente contra o novo coronavírus. Na prática, mesmo pessoas com doença mais grave ficam, passado o período de imunidade, suscetíveis novamente.
Por que é preciso esperar 90 dias?
O prazo foi estipulado para assegurar que, de fato, houve reinfecção. Estudos preliminares apontam que, antes de três meses, o indivíduo ainda pode ter vírus no organismo circulando (em casos de infecção duradoura) ou, ainda, há chances de o teste identificar “pegadas” do vírus no corpo.
Por que só houve confirmação de reinfecção agora?
Para unificar o entendimento sobre a reinfecção e garantir que ela de fato existe, autoridades internacionais foram conservadoras e estabeleceram uma série de pré-requisitos obrigatórios a serem cumpridos para confirmar uma dupla contaminação.
É necessário haver dois resultados positivos em exame PCR com intervalo de pelo menos 90 dias entre os diagnósticos. As amostras de ambos os vírus devem ter sido enviadas para sequenciamento genético em laboratório, e cientistas precisam checar se os vírus são de linhagens diferentes.
— A forma mais segura de comprovar uma reinfecção, em vez de ser uma persistência do vírus, é você comprovar que houve uma mudança na segunda infecção em relação à primeira — afirma o professor de Infectologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Alexandre Zavascki..
É fácil confirmar oficialmente uma reinfecção?
Não. Analistas apontam que a baixa cobertura de testagem brasileira, o relativo curto tempo de pandemia e a exigência de uma tecnologia moderna para sequenciar o vírus contribuem para a demora no diagnóstico de casos de reinfecção. Ao mesmo tempo, a segunda onda da pandemia deve aumentar a frequência de aparição desse tipo de episódio.
— Não é tão fácil comprovar que outro vírus invadiu um organismo. É um procedimento bem mais complexo. Você não tem nos laboratórios de rotina, de assistência, das clínicas, um sequenciador. Acontece, às vezes, de a pessoa ter uma reinfecção e ir a um hospital de referência que tem um biobanco que guardou a primeira amostra. Usando esses critérios teremos confirmados muito poucos casos. Porém, teremos cada vez mais casos prováveis de reinfecção — diz Alexandre Zavascki.
A reinfecção pode ser pior do que a primeira?
Há evidências para ambos os desfechos. Até agora, estudos mostram que, em algumas pessoas, a reinfecção gerou um quadro pior e, em outras, um quadro melhor.
— Às vezes, a reinfecção pode ter um quadro mais grave, o que pode estar ligado à hiperestimulação do sistema imune, que começa a atacar você mesmo. Algumas pessoas podem ter isso, outras, não — observa o virologista Paulo Eduardo Brandão, professor da Universidade de São Paulo (USP).
O que se sabe até hoje é que a gravidade da infecção no primeiro episódio determina o tempo de imunidade, acrescenta Alexandre Zavascki, professor de Infectologia na UFRGS.
— Se na primeira infecção houve uma carga viral pequena, o sistema imune não reconhece isso como sinal para descencadear uma memória mais forte e duradoura — diz o médico.
A reinfecção só ocorre com um vírus que mutou?
Não. O método oficial para confirmar uma reinfecção exige dois vírus de linhas diferentes, mas, com base na experiência de outros vírus, analistas pontuam que a reinfecção pode acontecer simplesmente porque a resposta imunológica do organismo deixou de existir.
— A reinfecção não acontece porque o vírus mutou. A causa é a ausência de uma resposta imune protetiva e duradoura — comenta o médico infectologista Alexandre Zavascki.
Isso pode explicar os relatos de reinfecção que abundam entre profissionais da saúde e os casos presumidos divulgados pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre na semana passada.
O próprio Ministério da Saúde admite a possibilidade de reinfecção pelo mesmo vírus em nota técnica de 30 de outubro: “A reinfecção por cepas homólogas também é uma possibilidade, mas no atual cenário, e em virtude do conhecimento de que o SARS-CoV-2 pode provocar eventualmente infecções por períodos prolongados de alguns meses, faz-se necessário determinar critérios de confirmação, como sequenciamento genômico, para comprovação de que se tratam de infecções em episódios diversos, por cepas virais diferentes”.
O entendimento norteia também o governo dos Estados Unidos. O CDC diz que, “por conta da necessidade de um entendimento comum sobre o que é a reinfecção, o CDC propõe um protocolo investigativo comum para identificar com alto grau de certeza e sugere a testagem das espécimes dos vírus”.
Um vírus que mutou pode causar um quadro pior do que o anterior?
Não necessariamente. As adaptações do vírus podem ser simplesmente mudanças na sua constituição, sem que haja uma relação direta com um maior risco à humanidade.
— Outros coronavírus causam um resfriado anual, mas as mutações não se traduzem necessariamente em mais letalidade — diz o virologista Paulo Eduardo Brandão, professor da Universidade de São Paulo (USP).
A biomédica Mellanie Fontes-Dutra, pós-doutoranda em Bioquímica na UFRGS e idealizadora da Rede Análise Covid, concorda:
— Do que vemos estudando em mutações, nada nos indica que elsa estão tornando o vírus pior. Não parece ter mudado o quadro clínico da pessoa — afirma.
É comum a reinfecção por covid-19?
Não é comum, mas também não é rara. Como a pandemia afeta muitas pessoas, é esperado que haja um número considerável de recontaminações. A frequência também deve crescer em meio à segunda onda de diferentes países.
— Não é nenhuma surpresa que coronavírus cause reinfecção. A gente já tem coronavírus em humanos que convivem com gente há muito mais anos, causando resfriados, e eles causam mais de uma infecção — afirma o virologista Paulo Brandão, da USP.
O CDC cita um estudo segundo o qual outro coronavírus humano que circulou no Quênia provocou duas ou mais reinfecções em até 21% da população em um período de seis meses.
O vírus da gripe é o exemplo mais clássico de reinfecção – por isso é que a vacina é tomada anualmente. Já o vírus do sarampo é exemplo tradicional de um agente que causa imunidade para o resto da vida.
Quantos casos de reinfecção por covid-19 há no mundo?
Oficialmente, há 27 casos de reinfecção no mundo, segundo um rastreador abastecido pela agência de notícias holandesa BNO News, que já incluiu o caso brasileiro na conta.
O primeiro caso foi registrado em 24 de agosto, em Hong Kong, e chegou a ser publicado em uma revista científica. Era um homem de 33 anos, cujas duas infecções foram investigadas por meio de sequenciamento genético. Também há casos documentados na Holanda, Estados Unidos, Índia, Bélgica, Catar, Equador, Espanha, Suécia e Coreia do Sul.
A vacina protegerá contra a reinfecção?
Tudo indica que sim. A biomédica Mellanie Fontes-Dutra, da Rede Análise Covid, cita que o estudo acerca da vacina da Pfizer mostrou que a imunização protegeu contra mais de uma dezena de variantes do Sars-Cov-2. Enquanto isso, a infecção sem vacina, além de deixar o indivíduo mais doente, protege apenas contra a linhagem daquele vírus específico.
— As vacinas que estamos desenvolvendo têm grande chance de abranger muitas variante do Sars-Cov-2,. Já a resposta que nosso organismo monta sozinho (sem vacina) pode não abranger muitas variantes — destaca Mellanie.
Ao tornar as pessoas protegidas contra a covid-19, acrescenta a biomédica, a vacina também deve reduzir as taxas de contaminação, o que protegerá também pessoas que não puderem tomar a vacina.
— Se as pessoas querem um dia poder não usar máscara e experimentar o normal que todos sentem falta, então temos que ter o máximo possível de pessoas vacinadas. Quanto mais pessoas vacinadas, menor será a circulação do vírus— afirma Mellanie.
Teremos que tomar vacina contra a covid-19 todos os anos, assim como a vacina da gripe?
É provável, mas só saberemos após acompanhar os vacinados nos próximos meses.
— Depois que todos serem vacinados, pegaremos uma parcela das pessoas para estudar a temporalidade da vacina. Veremos quanto tempo dura a imunidade e em que momento começa a cair — comenta a biomédica Mellanie Fontes-Dutra.




