Conteúdo verificado: post da deputada federal Major Fabiana usa fala de um representante da OMS para sugerir que a entidade mudou de opinião em relação à adoção de políticas de isolamento como meio de controle do vírus da covid-19
É enganoso o tuíte de uma deputada federal do PSL que imputa à Organização Mundial de Saúde (OMS) uma mudança de posição a respeito da utilização de lockdowns no controle da pandemia da covid-19. Em seu post, a parlamentar tira de contexto uma frase de um representante da OMS proferida durante entrevista a um site britânico em 9 de outubro.
Na ocasião, David Nabarro — que é enviado especial da organização e não seu diretor, como afirma a deputada —, de fato destacou os impactos econômicos e sociais negativos dos lockdowns. Isso não significa, no entanto, que a OMS tenha mudado de posição. Na mesma entrevista, Nabarro afirmou que os lockdowns são justificados em momentos de crise, para reorganizar os sistemas de saúde e proteger os profissionais que estão na linha de frente do combate à doença. A ideia desta prática é “achatar a curva” de contágio, evitar a superlotação de hospitais e, depois, permitir a reabertura das economias.
Nas redes sociais, a declaração crítica aos lockdowns de Nabarro foi utilizada para referendar de maneira retroativa a posição de determinados líderes políticos que eram contrários a essa prática mesmo nos momentos iniciais de crise da pandemia, quando as autoridades sanitárias recomendavam o fechamento de diversos setores da economia. A deputada federal cujo tuíte foi verificado é major da Polícia Militar do Rio de Janeiro e se define como “deputada federal da base do presidente” Jair Bolsonaro (sem partido).
Três dias depois da entrevista de Nabarro, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, criticou a dicotomia entre o fechamento das economias por tempo indeterminado e deixar a circulação do vírus livre — defendida por Bolsonaro e também por Donald Trump nos Estados Unidos, por exemplo. De acordo com Tedros, a entidade recomenda como forma principal de combate à pandemia medidas como detecção de casos, testagem em massa, rastreamento de contatos, quarentena para os infectados, higienização e máscaras.
Ao Comprova, a epidemiologista Denise Garrett, que atua no Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, destacou que os lockdowns e essas medidas de contenção citadas pelo diretor da OMS são parte da mesma estratégia.
— O que precisamos é um plano, uma estratégia e articulação, de preferência a nível nacional, o que infelizmente não temos no Brasil —afirmou.
Como verificamos?
Inicialmente, fizemos uma busca no Google para saber se algum representante da OMS havia falado recentemente sobre os lockdowns como uma estratégia de enfrentamento à pandemia. Por meio de uma matéria da revista Veja, descobrimos que a declaração havia partido de David Nabarro, enviado especial da OMS para lidar com a crise da covid-19, em uma entrevista ao site The Spectator. A partir daí, localizamos uma matéria do site britânico e um vídeo da entrevista, por meio do qual foi possível saber exatamente o contexto em que Nabarro usou a frase. Paralelamente, conseguimos confirmar as credenciais de Nabarro no site oficial da OMS.
A partir daí, enviamos questionamentos à assessoria de imprensa da Opas, entidade que representa a OMS nas Américas, para saber qual o posicionamento dela sobre a adoção de lockdowns e quais são as estratégias recomendadas para enfrentar o novo coronavírus. Também buscamos no site da OMS o último comunicado sobre as estratégias para conter o SARS-CoV-2 divulgado pelo diretor da entidade, Tedros Adhanom.
Entrevistamos a epidemiologista Denise Garrett, que há mais de 20 anos é afiliada ao Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos e o mestre em saúde pública Márcio Sommer Bittencourt, pesquisador do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica da USP (CPCE-USP) e membro do grupo de pesquisa Infovid, sobre a adoção de lockdowns e medidas de fechamento das atividades econômicas adotados no Brasil. Também procuramos a assessoria da deputada federal Major Fabiana, que publicou o tuíte, mas ela não respondeu até a publicação desta verificação.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 16 de outubro de 2020.
Verificação
A fala de Nabarro
Embora esteja ligado à OMS, David Nabarro não é um dos diretores da organização. Ele atua como enviado especial da OMS para assuntos relacionados à pandemia. Nabarro e outras cincos pessoas integram um grupo de enviados especiais da OMS que tem por objetivo promover conselhos estratégicos a governos. O anúncio com os nomes dessa equipe ocorreu em 21 de fevereiro de 2020.
No vídeo da entrevista, a resposta de Nabarro sobre o tema lockdown na pandemia é um pouco mais completa do que a transcrição que viralizou. Ele diz que o lockdown deveria ser usado para ganhar tempo até que os governos desenvolvam estratégias melhores de controle do vírus.
Em tradução livre, a fala do enviado especial começou assim: "Um ponto realmente importante (…). Eu gostaria de afirmar novamente: nós, da Organização Mundial de Saúde, não defendemos o lockdown como o primeiro meio de controle do vírus. O único momento em que nós acreditamos que o lockdown é justificado é para ganhar tempo para reorganizar, reagrupar e rebalancear seus recursos; proteger seus profissionais de saúde que estão exaustos. Mas, em geral, nós preferimos não fazer isto."
Nabarro segue sua resposta pedindo para que se olhe “o que está acontecendo com a indústria do turismo no Caribe ou no Pacífico porque as pessoas não estão tirando suas férias”. Ele também menciona a situação dos “pequenos proprietários agrícolas em todo o mundo porque seus mercados foram fechados” e os níveis de pobreza, que segundo ele, em 2021, podem dobrar no mundo.
Na sequência, ele reforça que talvez dobremos também o número de crianças mal nutridas “porque as crianças não estão se alimentando nas escolas e os seus pais, nas famílias mais pobres, não são capazes de pagar por isso”. Ele define a situação como “uma terrível e medonha catástrofe global”.
Ele finalizou dizendo: “Nós realmente pedimos a todos os líderes mundiais: parem de usar o lockdown como o seu primeiro método de controle. Desenvolvam sistemas melhores para fazer isso. Trabalhem juntos e aprendam uns com os outros. Mas se lembrem que lockdowns têm uma consequência que você nunca deve menosprezar. E ela é fazer pessoas pobres ainda mais pobres.”
O que a OMS pensa sobre lockdown
Quatro dias após a entrevista de Nabarro, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, leu um comunicado criticando a ideia de deixar as pessoas expostas ao vírus para atingir a imunidade de rebanho. “Não é uma escolha entre deixar o vírus livre para circular ou fechar nossas sociedades. O vírus é transmitido entre contatos próximos e causa surtos que podem ser controlados através de medidas direcionadas. Prevenir eventos amplificadores; proteger os mais vulneráveis; empoderar, educar e engajar comunidades. E persistir com as mesmas ferramentas que nós temos defendido desde o primeiro dia: encontrar, isolar, testar e cuidar dos casos, encontrar e pôr em quarentena seus contatos”, afirmou.
No mesmo comunicado, também disponível em vídeo no site da entidade, ele lembrou que há várias ferramentas disponíveis para combater a pandemia. “A OMS recomenda a identificação dos casos, isolamento, testagem, cuidado compassivo, rastreamento de contatos, quarentena, distanciamento físico, higienização das mãos, máscaras, etiquetas respiratórias, ventilação, evitar multidões e mais”, afirmou.
Adhanom também disse reconhecer que, em certos momentos, alguns países não tiveram escolha a não ser emitir ordens para que as pessoas permanecessem em casa como uma medida para ganhar tempo. “Muitos países usaram esse tempo para desenvolver planos, treinar profissionais de saúde, distribuir suprimentos, aumentar a capacidade de testagem, reduzir o tempo dos testes e melhorar o cuidado com os pacientes. A OMS está esperançosa que os países irão utilizar as intervenções onde e quanto necessárias, baseados em suas situações locais”, prosseguiu.
Procurada pelo Comprova, a Opas enviou uma nota por e-mail afirmando que os lockdowns voltaram a ser um tópico de discussão no momento em que os países voltam a enfrentar picos da covid-19. Embora veja essa medida como “não sustentável”, a OMS entende que ela pode ser necessária para suprimir rapidamente o vírus e evitar que o sistema de saúde do país seja sobrecarregado. “Lockdowns não são soluções sustentáveis devido a seus impactos econômicos, sociais e de saúde mais amplos. No entanto, durante a pandemia de covid-19, houve momentos em que as restrições foram necessárias e pode haver outros momentos no futuro”, afirma a OMS.
A entidade defende que, por causa dos seus impactos econômicos e sociais, os lockdowns precisam ter duração limitada e devem ser utilizados para que o país possa preparar medidas de saúde pública de longo prazo e buscar soluções mais sustentáveis. A Opas também enviou ao Comprova uma lista de orientações e precauções relacionadas à pandemia que devem ser seguidas por cidadãos e governos.
Orientações da OMS:
- Identificar casos da covid-19
- Isolar pessoas com casos confirmados
- Testar e cuidar de cada pessoa com caso confirmado
- Rastrear e colocar em quarentena todos os contatos dessas pessoas
- Equipar e treinar profissionais de saúde
- Educar e capacitar as comunidades a protegerem a si e aos outros
Precauções relacionadas à covid-19:
- Distanciamento físico (pelo menos 1 metro)
- Lavar/higienizar as mãos
- Usar uma máscara quando o distanciamento físico não for possível
- Tossir e espirrar a uma distância segura das outras pessoas
- Evitar aglomerações
- Manter as janelas e portas abertas quando você não puder encontrar amigos e familiares do lado de fora
Especialistas
A epidemiologista Denise Garrett, filiada há mais de 20 anos no Centro de Controle e Prevenção de Doenças, em Atlanta, nos Estados Unidos, explicou por que as adoções de lockdowns foram importantes no início da pandemia:
— Foram importantes para nos dar mais tempo de aprender a tratar melhor os pacientes e preparar o sistema de saúde. Salvaram milhões de vidas e temos vários estudos científicos mostrando esse impacto.
Garrett, que também é vice-presidente do Sabin Vaccine Institute, reforçou que o lockdown não é uma medida a ser adotada por longo tempo.
— Essa é uma medida temporária para criarmos uma estratégia de controle e nos prepararmos. Mas também não podemos simplesmente deixar o vírus correr solto. O que precisamos é um plano, uma estratégia e articulação, de preferência a nível nacional, o que infelizmente não temos no Brasil — pondera.
Para a médica é preciso "abordagens mais diferenciadas e direcionadas usando dados sobre nossas epidemias locais", o que consequentemente exigirá investimentos, sobretudo, em testes. Desta maneira é possível elaborar intervenções para abordar o que está acontecendo nas comunidades, adaptando as intervenções e realizando alterações necessárias à medida que as evidências também mudam.
Ela finalizou enfatizando que, “até termos uma vacina efetiva e segura, nós precisamos desacelerar a transmissão com medidas restritivas planejadas e direcionadas”.
O Comprova ouviu também o mestre em saúde pública Márcio Sommer Bittencourt, pesquisador do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica da USP (CPCE-USP) e membro do grupo de pesquisa Infovid. Ele acredita que as pessoas estão usando o lockdown de forma política, até mesmo porque não se tem uma definição homogênea da OMS do que é o lockdown.
— Lockdown é uma expressão que as pessoas inventaram e que não tem uma definição tão clara do que é. Em alguns países está se chamando de lockdown uma intervenção muito mais intensa que em outros países que também estão adotando lockdown com uma intervenção muito menos intensa — avalia.
Bittencourt explica que a OMS propõe uma “estratégia multifacetada de intervenções comunitárias, também chamada de intervenções não-farmacológicas, que atuam em várias direções”. Ele também expôs quais são os pilares dessa estratégia:
— O primeiro pilar é o isolamento de caso, depois vem a quarentena de contatos, seguido das medidas de bloqueio físico e bloqueio químico e o quarto pilar é evitar medidas de super disseminação.
Ele reforçou que os quatro pilares são a parte principal da estratégia de manutenção de controle para Covid-19. E que existe um quinto pilar, o do distanciamento físico, que segundo ele é mais flexível.
— Nele você inclui desde pedir para as pessoas ficarem a dois metros umas das outras até pedir para fechar estabelecimentos, proibir viagem, reduzir o número de pessoas no restaurante e etc. Ou num caso muito extremo, particular e por período curto de tempo, quando está muito intenso, pedir até fechamento completo de uma cidade e todo trânsito não essencial — explica Bittencourt.
O pesquisador enfatizou que a adoção de lockdown não é a primeira estratégia, não é primordial e não é obrigatoriamente necessária:
— É uma medida de exceção, quando os outros quatro pilares não podem ser implementados adequadamente ou ainda não foram implementados adequadamente. Ou até mesmo, quando já foram e não estão dando conta, você vai intensificando as medidas de distanciamento. Idealmente, você não deveria chegar num lockdown ou num fechamento tão extremo. Essa seria uma medida de último recurso que pode sim ser necessária e que é sim eficaz.
Por que investigamos?
Em sua terceira fase, o Comprova investiga conteúdos suspeitos que tenham viralizado nas redes sociais sobre a pandemia e sobre políticas públicas do governo federal. Quando esses conteúdos tratam de formas de prevenção ou de tratamento da doença causada pelo novo coronavírus, a checagem se torna ainda mais importante, já que a desinformação pode levar as pessoas a deixarem de se proteger e se expor a riscos desnecessários, durante uma doença que já causou 152,4 mil mortes e infectou 5,1 milhões de pessoas no Brasil, segundo o Ministério da Saúde.
A publicação da deputada federal Major Fabiana teve 1,1 mil compartilhamentos e 5,8 mil curtidas no Twitter. Conteúdo similar publicado no site Frontliner teve 3 mil interações nas redes sociais, segundo a plataforma de monitoramento CrowdTangle. O tema também tem importante repercussão política, uma vez que o presidente Jair Bolsonaro e diversos governadores entraram em atrito durante a pandemia por causa de medidas de fechamento da economia para conter a propagação do Sars-CoV-2.
Recentemente, o Comprova mostrou que um tuíte enganou ao questionar a compra de vacinas pelo governo de São Paulo; que um post distorceu informações para insinuar que China não usará a própria vacina; que um estudo distorce dados para dizer que países que usaram a hidroxicloroquina tiveram 75% menos mortes pela covid-19; e que vacinas contra o novo coronavírus não serão capazes de provocar danos genéticos nem vão monitorar a população.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; ou que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Projeto Comprova
Depois de um período especial de 75 dias dedicado exclusivamente à verificação de conteúdos suspeitos sobre o coronavírus e a covid-19, o Projeto Comprova começou em 10 de junho a terceira fase de suas operações de combate à desinformação e a conteúdos enganosos na internet. O objetivo da iniciativa é expandir a disseminação das informações verdadeiras.
Nesta terceira etapa, o Comprova vai retomar o monitoramento e a verificação de conteúdos suspeitos sobre políticas públicas do governo federal e eleições municipais, além de continuar investigando boatos sobre a pandemia de covid-19. Fazem parte da coalizão do Comprova veículos impressos, de rádio, de TV e digitais de grande alcance.
Este conteúdo foi investigado por Jornal do Commércio e Agência Mural e verificado por A Gazeta, Estadão, Folha, GZH, Piauí e UOL.
É possível enviar sugestões de conteúdos duvidosos e que podem ser verificados por meio do site e por WhatsApp (11 97795-0022). GZH publicará conteúdos checados pela iniciativa. O Comprova tem patrocínio de Google News Initiative (GNI), Facebook Journalism Project, First Draft News e WhatsApp e apoio da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). A coordenação é da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).