Em uma tarde do final de março, a médica de família Cynthia Molina Bastos, 40 anos, observou o marido parar o carro perto da Unidade Básica de Saúde (UBS) Santa Cecília, em Porto Alegre, onde ela trabalha. Halisson Bastos, 43, médico acupunturiatra, baixou o vidro traseiro, que revelou a ansiosa e tão aguardada passageira.
— Oi, filha — cumprimentou a mãe.
Larissa, seis anos, acomodada na cadeirinha, começou a chorar:
— Eu quero um colinho da mamãe!
Já estava em curso, desde o início daquele mês, o plano de ação que o casal resolveu colocar em prática para proteger os pais de Cynthia, idosos e com condições graves de saúde que os colocam sob risco ainda maior dos efeitos de uma contaminação por coronavírus. Como Cynthia está na linha de frente do enfrentamento da pandemia, ficou decidido que deixariam as crianças aos cuidados dos avós, por tempo indeterminado. Assim, os aposentados Maria do Carmo Goulart, 68, e Luiz Carlos Pereira, 77, não seriam privados da convivência com os netos — além de Larissa, há Leonardo, um ano e quatro meses. Cynthia não toca nos filhos nem nos pais durante os raros encontros presenciais. Os papéis de mãe e de filha encarnados por ela, de repente, tornaram-se virtuais.
Para tentar acalmar a aflição de Larissa naquele dia de março, aos prantos dentro do automóvel, Cynthia recorreu a uma explicação com ingredientes lúdicos:
— Filha, a mamãe é um soldadinho que está aqui lutando.
O argumento fez sentido para a primogênita.
— Tá bom, mamãe. Mas tu te cuida, tá? —despediu-se a menina.
Como não trata diretamente de pacientes com suspeita ou confirmação de contágio pelo vírus, Halisson — de máscara — visita os filhos, brinca, acompanha os temas da escola. Pelo fato de o médico manter o trânsito entre os dois endereços, estabeleceu-se outra medida extrema para que o plano fosse, de fato, eficaz. Mesmo morando juntos no mesmo apartamento do bairro Petrópolis, os cônjuges estão fisicamente distantes. Dormem em quartos e camas separados, utilizam banheiros distintos, não se aproximam muito ao ver televisão. Antes, cogitou-se que Halisson ficasse com as crianças, mas ele resolveu permanecer ao lado da esposa, com o intuito de preservar a saúde mental dela.
O casal ilustra, com rigor na aplicação das estratégias preventivas, a realidade de profissionais da área da saúde que vêm se defrontando com dilemas semelhantes: a necessidade — ou a dúvida a respeito — de se afastarem do convívio diário dos familiares mais próximos para que não se tornem transmissores involuntários da doença — e para não terem de lidar com a culpa e o sofrimento que esse possível contágio poderia provocar.
Cynthia conta que não foi fácil chegar a esse esquema, em vigor há quase três meses. Em março, Larissa e Leonardo adoeceram, contraindo uma virose comum, provavelmente, e passaram para os cuidados dos avós enquanto se recuperavam. A mãe dormiu com os filhos por duas noites, e então começou a se inquietar. A Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou o estado de pandemia em 11 de março. Assim que o vírus começasse a circular no Hospital de Clínicas, onde também atua, pensou Cynthia, ela se tornaria um potencial vetor da covid-19.
— Um dia, dei um beijo neles, fechei a porta e pensei: "Não sei se vou voltar" — recorda ela. — É o certo a ser feito. A gente tem que saber o que é importante, quem vai preservar — justifica.
Cynthia costuma levar compras até o prédio dos pais. Evita ver o caçula pela porta, temendo que ele chore. Um dia, Larissa lhe pediu:
— Posso tocar em ti?
Por breves instantes, mãe e filha se deram as mãos. Leonardo, no fim, mostrou-se tranquilo e até deu tchauzinho. Depois do contato, a menina rumou para o banho. Cynthia deixava o edifício quando recebeu o resultado do exame de uma paciente que havia examinado dias antes: positivo para coronavírus. Desesperou-se.
— Não vai acontecer nada, não vai acontecer nada! — disse Maria do Carmo, tentando acalmar a filha.
Os dias e as semanas passam com os compartilhamentos possíveis. São inúmeras as videochamadas para conversar e brincar. Em geral, quando Leonardo vai comer, Maria do Carmo liga para que Cynthia acompanhe a refeição pela tela do celular — o menino já chama o aparelho de "mamãe". Larissa enfrentou momentos de raiva e agressividade. Cynthia a chamava para conversar.
— Eu tô chateada — contou a menina certo dia.
A mãe a consolou:
— Filha, é para todo mundo. Não está fácil para ninguém. É assim. A gente pode reclamar, ficar chateada, com raiva. Não é feio, não é errado, mas a gente não pode tratar mal os outros por causa disso.
Cynthia graceja com Halisson que o casal está antecipando a experiência do chamado ninho vazio _ quando a prole, criada, se despede para trilhar o próprio caminho. Ao comentar como avalia a experiência até aqui, a médica esclarece que não se trata de sacrifício, mas de encarar a única opção de que dispõe.
— Coloquei na balança: com qual "sentimento'' eu lidaria melhor: ter chance de ser o vetor do vírus e perder os meus pais ou a minha saudade? Se quero ensinar valores em que acredito para os meus filhos, como cuidar e proteger as pessoas que amamos e as mais frágeis, a primeira coisa que preciso fazer é educar pelo exemplo. Fiz a única escolha que vou saber explicar para eles no futuro. Tudo tem um preço. Escolhi o preço que consigo pagar.
A 370 quilômetros de distância
Enfermeira do Hospital Cristo Redentor que cumpre jornadas noturnas de 12 horas, Maria Isabel Michel Batista, 44 anos, reforçou os cuidados com limpeza e higiene quando o coronavírus começou a se espalhar pelo Brasil. Ao chegar em casa, de manhã cedo, botava toda a roupa na máquina de lavar. Trocava lençóis e toalhas diariamente, inclusive os dos filhos, Markus, 10, e Matheus, 17.
— Para de pirar, mãe — pediu o mais velho. — Que "noia"!
Como os meninos passaram a ter aulas online e o caçula dependia da mãe para conseguir acordar na hora certa e prestar atenção nos conteúdos, Maria Isabel, em vez de ir para a cama para recuperar o sono perdido, avançava, desperta, pela manhã, acompanhando com Markus as disciplinas do quinto ano do Ensino Fundamental. Além do medo da covid-19, estava ficando cansada para encarar os plantões.
— Por que você não traz os guris para cá? Você fica monitorando tudo daí — sugeriu a mãe da enfermeira, moradora de São José das Missões, a cerca de 370 quilômetros de Porto Alegre.
Maria Isabel pensou, primeiro, se seria capaz de aguentar a saudade, mas o número de casos confirmados de doentes começou a subir. Foi ficando cada vez mais assustada. O fato de Matheus sofrer de asma contribuiu para a tomada de decisão. Colocou os guris no carro e pegou a estrada.
De volta à Capital, a enfermeira acompanhava por aplicativos as tarefas dos filhos. Ligava e cobrava o cumprimento dos prazos. Quando não surtia efeito, telefonava para a mãe e pedia uma intervenção direta. Por videochamadas, aplacava a falta que os dois faziam na residência do bairro Jardim Itu-Sabará. Vez ou outra, esbarrava em dificuldades.
— Eles ficam me dando "migué". Sou mãe de guri, né? Eles jogam muito videogame e jogos no computador. Se ligo e eles estão no meio do jogo, não me atendem. Aí deixo recado: "Diz para os meus filhos que, quando tiverem saudade de mim, podem retornar a ligação, porque eu já liguei hoje" — conta Maria Isabel, rindo.
Como a pandemia, pelo menos por enquanto, não afetou drasticamente o Rio Grande do Sul, Maria Isabel não precisou, como esperava, trabalhar horas a mais. Percebeu-se chorosa quando falava com os garotos e começou a evitar vê-los nas chamadas. Aguentou a distância por 36 dias. Quando o chefe lhe ofereceu uma folga, não pensou muito. Na última semana, viajou. Para diminuir os riscos de se contaminar no caminho até o noroeste gaúcho, tomou banho antes de sair, pegou um lanche para comer no carro e só parou para a cadelinha de estimação fazer xixi — ela não foi ao banheiro.
— Cheguei e eles pularam no meu pescoço. Não era esse o plano, mas pelo menos eu estava de máscara. Botei minha roupa a lavar em separado e fui para o banho — relata ela. — Dei aquela respirada de novo — resume.
Depois da quebra de protocolo no distanciamento autoimposto, Maria Isabel já está em Porto Alegre outra vez. Os filhos continuam no Interior.
Nova rotina precisa ser combinada
Qualquer que seja a estratégia adotada para lidar com as readequações exigidas pelos tempos atuais, um princípio é fundamental: o casal tem de estar de acordo a respeito da nova rotina que será implementada. Trata-se de um acerto que deve derivar da concordância dos pais e ser devidamente explicado, da forma mais clara e objetiva possível, aos filhos. Crianças e adolescentes devem entender por que se tomaram essas decisões e como elas serão colocadas em prática.
A psicóloga Juliana Potter, terapeuta de casais e de família e professora do Centro de Estudos da Família e do Indivíduo (Cefi), explica que, quanto menor a criança, mais difícil se torna a tarefa de explicar a complexidade do que estamos enfrentando e a eventual necessidade de afastamento dos pais. As maiores, por sua vez, são capazes de entender bem, tornando-se, inclusive, vigilantes do comportamento dos adultos em relação ao cumprimento das medidas de higiene, como lavar com frequência as mãos e descalçar os sapatos antes de entrar em casa. Outras medidas que venham a ser tomadas pelas famílias, como as retratadas nos casos dos profissionais de saúde apresentados nesta reportagem, também tendem a ser melhor compreendidas a partir dos cinco anos.
— Muitas crianças entendem melhor a questão do afastamento para preservação da saúde do que os adultos — compara Juliana.
Cada caso é peculiar, salienta a terapeuta, e os pais devem refletir se esse distanciamento, ainda que com o nobre objetivo de preservar a saúde, não poderá gerar problemas futuros de ansiedade:
— Que cada família encontre a sua via para que todos sofram menos. Se as crianças entenderem isso como algo amoroso, como vejo que a maioria delas consegue compreender, tudo bem.
Durante a primeira infância (até os sete anos), a manutenção de uma rotina é fundamental para garantir a segurança emocional. Se o cuidado for delegado aos avós ou a outros familiares, é preciso ficar combinado que os mesmos hábitos serão estabelecidos no "lar temporário". As crianças precisam acordar, dormir e comer nos horários de sempre, além de cumprir com suas tarefas costumeiras, como assistir às aulas — por ora, via internet — e fazer o tema. Juliana pondera que, claro, alguma "escapada", especialmente se facilitada por carinhosos avôs e avós, podem ser permitidas eventualmente.
— A rotina que continua acontecendo tranquiliza a criança, mesmo que ela esteja passando por algo muito difícil. "Tem algo na minha vida que continua igual", ela sente — comenta a psicóloga.
Dicas para lidar melhor com o afastamento
- Quanto menor a criança, mais difícil é o desafio dos pais para que ela compreenda o que está acontecendo. Dedique-se a explicar a situação e as decisões tomadas, de forma simples e compreensível, levando em conta a idade.
- Os menores também precisam de mais atenção no modelo de funcionamento familiar a distância. As chamadas de vídeo devem ser realizadas diariamente — se preciso, mais de uma vez por dia. A percepção de tempo pela criança é diferente, variando conforme a faixa etária.
- Para quem está preocupado com as horas que crianças e adolescentes têm dedicado à utilização de celulares e demais eletrônicos, é importante estabelecer uma diferenciação: passar 20 minutos conversando com o pai e a mãe, olhando para o rosto deles, não é a mesma coisa que passar 20 minutos vidrado em um joguinho. Invista nesse tipo de recurso para se mostrar presente.
- Procure manter algo da rotina familiar nas videochamadas, mesmo que isso pareça estranho em um primeiro momento. Se seu filho está habituado a ouvir uma história antes de dormir, faça isso, mesmo que seja pelo celular. O telefone também pode aproximar na hora das refeições e do banho. Descubra as melhores ferramentas tecnológicas para o seu caso.
- Use a criatividade. Para os menores, o concreto, ou seja, aquilo que se pode tocar, como um objeto ou uma folha de papel, é especial. Experimente enviar uma carta, um desenho, um presente ou um objeto seu para a casa onde a criança estiver vivendo provisoriamente.
- É natural que surjam momentos de crise e choro. Tente explicar que todos estão passando por perdas, mesmo que pequenas se comparadas às grandes perdas de outras pessoas. No mínimo, todos perderam a liberdade de andar pelas ruas sem máscara. Valide o sofrimento do seu filho, ajude-o a entender o que está sentindo, acolha-o.
Fonte: Juliana Potter, psicóloga e terapeuta de casais e de família