A rua de chão batido do bairro Conservas, em Lajeado, estava vazia. Havia movimentação apenas na frente de uma pequena casa de alvenaria, onde um homem gesticulava e falava pausadamente, ofegante, com uma vizinha que observava tudo de dentro de casa.
Era José Adão da Silveira, 59 anos, que no final da manhã daquela sexta-feira, 8 de maio, havia acabado de receber alta hospitalar após ser internado em 25 de abril por complicações da covid-19. Ele é um dos 38 curados do coronavírus em Lajeado até o momento. Em duas semanas, era a primeira vez que voltava para casa, com o auxílio da sobrinha, que foi buscá-lo no Hospital Bruno Born.
Silveira é funcionário do setor de serviços gerais de um frigorífico de Lajeado, sentiu-se mal dentro da empresa, foi encaminhado para o médico do local de trabalho, passou por uma Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) e, na sequência, acabou internado no hospital. Tudo no mesmo dia. Seu caso era de emergência.
— Comecei a sentir dor no corpo, na garganta, tive feridas na língua, muita febre, pontadas e sede. Acabei perdendo as forças. É algo que não desejo para ninguém, tive bastante medo — conta Silveira.
Na sexta, ao voltar para casa, demonstrava satisfação ao reencontrar suas coisas, como o Fusca vermelho na garagem e o cachorro preto que não parava de ladrar. Iria passar por 20 dias de repouso, conforme recomendação médica, tomando medicações leves como dipirona e paracetamol.
Apesar de ser aposentado, Silveira diz que pretende voltar a trabalhar assim que expirar seu período de atestado. Considera-se muito jovem para parar por completo, mas revela temor de ser contaminado novamente. No hospital, ele chegou a precisar de oxigênio por longos períodos, embora não tenha necessitado de UTI. A experiência traumática, em meio à alegria da recuperação, o levou a refletir:
— Nessa hora, a gente sente que pode ter muito dinheiro no banco, mas a sensação é de que não se tem nada quando não podemos nos mover, não podemos respirar.
Disseminação na periferia
Silveira é parte do contexto dos bairros Conservas e Jardim do Cedro, em Lajeado. São localidades periféricas e limítrofes, que formam a região mais atingida da cidade pela pandemia de coronavírus. Conforme dados da prefeitura, dos 185 contaminados no município, 47 moram nos dois bairros. E, dentre os oito óbitos registrados, três eram residentes dessas mesmas regiões. Tanto no Conservas quanto no Jardim do Cedro, há muitos moradores que são empregados nos frigoríficos Minuano e BRF, os quais se tornaram focos de transmissão de coronavírus. O Minuano recebeu interdição parcial da Justiça na semana passada, enquanto para o BRF a determinação foi de paralisação total das atividades.
A prefeitura destaca que, do total de casos de Lajeado, 29 têm relação com frigoríficos. No caso do bairro Conservas, um propulsor das contaminações teria sido um lar de idosos, com 11 testados positivos, informa a gestão municipal.
Moradores e pessoas atuantes nos dois bairros mais atingidos dizem que os números de infectados e de mortos são maiores do que as estatísticas oficiais. Eles apontam para coordenadas da região e começam a ditar famílias que tiveram doentes ou vítimas fatais.
— Agora quem está morrendo é o povo da periferia, os pobres — diz Loiva Crestani, diretora da Escola Estadual de Ensino Fundamental São João Bosco, no Conservas.
Uma quadra acima do colégio, o Bar do Gordo, de paredes pintadas em vermelho vibrante, estava fechado e a rua, vazia. O dono do estabelecimento era Gilmar Engel, 56 anos, que faleceu com um minuto de diferença para o filho Rodolfo, 32, ambos por covid-19. Há clima de consternação na região porque as pessoas conhecem ou convivem com vizinhos acometidos ou mortos pela doença. É o típico cenário em que o coronavírus deixou de ser uma estatística distante, invadindo as rotinas.
Mantidos por cestas básicas
Embora sejam periféricos, os bairros Conservas e Jardim do Cedro não se enquadram no padrão de miséria das vilas e favelas de grandes metrópoles. São locais ajeitados de uma pujante cidade do Interior que consta entre os 20 maiores PIBs (Produto Interno Bruto) do Estado, com algumas ruas asfaltadas, outras de pedra e parte de chão batido. As casas, em maioria, são de alvenaria e apresentam aspecto de estarem sob cuidados perenes. Isso não impede que, agora, o risco da fome se apresente aos moradores. Leopoldo Rodrigues do Nascimento é eletricista industrial autônomo e sua esposa, Luciane Nunes Feijó, trabalha como diarista. A pandemia fez sumir os chamados de trabalho para ambos e o dinheiro minguou.
— Estamos nos mantendo com as cestas básicas distribuídas pela Escola São João Bosco. Não entra dinheiro e ainda temos de pagar luz e água — relata Luciane.
Presidente do Sport Clube Internacional de Conservas, time amador do bairro, Claudiomir Couto da Silva é outro a atestar o fato de que "muita gente está sem renda".
Bandeira vermelha
Para dificultar ainda mais a situação na periferia, o posto de Saúde do bairro Conservas está fechado desde o início de março devido a recorrentes episódios de violência contra profissionais de saúde. A unidade do Jardim do Cedro está ativa. A prefeitura pretende reativar o posto do Conservas, mas avisa que, para problemas respiratórios, o primeiro atendimento do município está concentrado e assegurado nas UPAs do Centro e do bairro Montanha.
Conforme a última atualização do distanciamento controlado do governo estadual, a região de Lajeado é a única mantida em bandeira vermelha, com imposição de fechamento do comércio e serviços não essenciais.
Na sexta (8), havia lojas de roupa, de calçados e de artigos de pesca abertas. Vigorava uma autorização temporária para que esses estabelecimentos funcionassem no modo "pegue e leve" às vésperas do Dia das Mães. A circulação nas ruas era grande na região central de Lajeado, sobretudo de carros, e alguns restaurantes e lancherias serviam refeições nos seus espaços internos, com clientes sentados lado a lado.
Em nota, a prefeitura de Lajeado informou que está atuando nos bairros Conservas e Jardim do Cedro com "atenção especial em razão do alto número de contaminados".
"Equipes da Secretaria do Meio Ambiente estão fazendo desinfecções das áreas públicas, como ruas, locais junto a mercados e estabelecimentos e residenciais com grande número de moradores, usando produtos que eliminam vírus e bactérias do ambiente. A Secretaria do Trabalho, Habitação e Assistência Social está recebendo famílias em situação de vulnerabilidade social e reforçando o volume de entregas de cestas básicas para aquelas famílias que estejam, neste momento, necessitando de apoio específico", diz a gestão municipal.
A situação de Lajeado até as 16h de 11 de maio
Casos confirmados pela Secretaria Estadual da Saúde (SES) - 185
Número "possível" de infectados em contagem paralela do município - 420
Casos ativos pela estatística da SES - 139
Curados pela estatística da SES - 38
Óbitos pela estatística da SES - 8
Bandeira de Lajeado no distanciamento controlado - vermelha
População - 84 mil habitantes