Às 15h30min desta segunda-feira (4), em uma sala no bairro Rio Branco, em Porto Alegre, a oftalmologista Anelise Szortyka deu início a um atendimento:
— Boa tarde, dona Maria. Meu nome é Anelise. Vamos fazer um teste para ver como está sua visão.
Diante da médica, no entanto, não havia ninguém, apenas três grandes telas de computador. Em uma delas, à esquerda, aparecia a imagem da paciente. A mulher estava em um posto de saúde do SUS na Restinga, a 20 quilômetros de distância.
Pelo monitor, Anelise viu um técnico em enfermagem posicionar o refrator diante do rosto da mulher. A médica começou, então, o exame, comandando a troca de lentes do refrator pela tela do centro, enquanto conversava pelos fones com a paciente.
— Vamos começar o teste com letras embaralhadas. A senhora consegue ver a linha do meio? É melhor assim ou assim? Este ou este? Agora leia a linha de baixo. Melhor este ou este?
Antes de iniciar o procedimento, Anelise já havia recebido, na tela da direita, uma série de imagens dos olhos da mulher, tomadas por técnicos da unidade de saúde. O exame ainda prosseguiu por uns instantes, até que a oftalmologista constatasse a necessidade de aumentar o grau das lentes da paciente.
— Agora, pode descansar. A senhora vai receber no seu médico, no posto de saúde, a receita para os óculos novos — comunicou.
O atendimento aconteceu a partir das dependências do TelessaúdeRS, projeto vinculado ao programa de pós-graduação em epidemiologia da UFRGS, em parceria com Ministério da Saúde, Secretaria Estadual da Saúde, prefeituras e hospitais. Em atuação desde 2007, o serviço é um bom termômetro das potencialidades da telemedicina, área que vai entrar em uma nova fase no país. Nos próximos dias, o Conselho Federal de Medicina (CFM) deve publicar uma resolução que autoriza médicos a realizar consultas, diagnósticos e outros atendimentos via internet. Hoje, essas práticas são vedadas.
O TelessaúdeRS, por isso, opera dentro das limitações da legislação atual. No caso do telediagnóstico feito por Anelise, por exemplo, ela não repassa a receita diretamente à paciente, mas ao clínico dela, que fica responsável por dar a receita para os óculos novos. Os pacientes podem ser examinados em oito pontos espalhados pelo Estado, e o serviço funciona como um antídoto para a escassez de oftalmologistas.
As normas atuais, que devem mudar em breve, exigem consultas e diagnósticos presenciais, por isso a atuação do Telessaúde funciona, de forma geral, como uma espécie de consultoria prestada aos profissionais das unidades de saúde do SUS – não só do Rio Grande do Sul, mas de todo o Brasil. Diante de alguma dúvida, estes profissionais, e não os pacientes, podem entrar em contato com o serviço, pela internet ou por um 0800.
Eles são atendidos por um bolsista, que faz a triagem inicial e repassa a chamada para uma outra sala, que funciona como uma espécie de call center médico: ali atuam mais de 50 profissionais das mais variadas especialidades, incluindo medicina de família e comunidade, hematologia e hemoterapia, neurologia, endocrinologia e metabologia, medicina interna, ginecologia e obstetrícia, pneumologia, psiquiatria, gastroenterologia, dermatologia, reumatologia, urologia, oftalmologia, enfermagem, fisioterapia, nutrição, odontologia, estomatologia e psicologia.
Conforme Marcelo Rodrigues Gonçalves, vice-coordenador do TelessaúdeRS, essa consultoria oferecida ao médico que está no posto de saúde agiliza a solução para os pacientes e evita consultas desnecessárias. Segundo as estatísticas do serviço, para cada três ligações, dois pacientes deixam de ser encaminhados a um especialista. Nesta segunda à tarde, por exemplo, a médica de família Juliana Nunes Pfeil auxiliou um colega que tinha diante de si um doente de sífilis. Ele já tinha medicado o paciente, mas estava em dúvida sobre o exame feito após o tratamento. Não sabia se o resultado indicava cura e cogitava fazer um encaminhamento a um infectologista.
Juliana analisou os resultados (os médicos do Telessaúde podem receber na tela de seus computadores todo o tipo de exames), constatou que o paciente não estava curado e orientou o colega sobre o tratamento que ele deveria indicar. Evitou que a pessoa ficasse sem tratamento ou que fosse enviada para um outro profissional.
— Os médicos podem ligar para resolver qualquer dúvida. A grande maioria são dúvidas clínicas. O médico telefona para tentar resolver a situação do paciente, sem precisar encaminhar a outro profissional. Em boa parte dos casos, a gente consegue resolver nessa etapa inicial. Por exemplo, no caso de um paciente com diabetes, o médico pode entrar em contato para saber como iniciar a insulina. Depois disso, esse médico não vai mais entrar em contato por esse motivo, porque ele já aprendeu — explica Gonçalves.
O TelessaúdeRS realiza de 4 mil a 4,5 mil atendimentos ao mês. No acumulado, 73% das chamadas vieram do próprio Rio Grande do Sul (durante anos, a abrangência do serviço foi local). A partir de 2014, em parceria com a Secretaria Estadual da Saúde, o programa também passou a auxiliar na regulação das filas de espera por especialistas. A partir da análise dos dados dos pacientes, o serviço identifica os casos mais graves, para encaminhá-los com prioridade. Nos casos em que não há necessidade da consulta especializada – dois terços do total –, o serviço entra em contato com o médico que fez o encaminhamento, para orientá-lo sobre a forma de resolver o caso no próprio posto de saúde.
Solucionando os casos ainda na unidade básica e evitando reencaminhamentos desnecessários, o serviço ajudou a reduzir as filas de espera por especialistas. Em 2014, quando iniciou a parceria com o governo do Estado, havia 140 mil pacientes esperando uma consulta especializada. Hoje são 90 mil — para uma projeção de 400 mil, se nada tivesse sido feito. Em 2015, o tempo de espera para consultar um pneumologista era de 243 dias, para dar um exemplo. Hoje está em 46 dias.
O vice-coordenador do serviço acredita que o sucesso da experiência do Telessaúde pode ter contribuído para a resolução que o CFM vai publicar. Segundo ele, o documento será estudado para que se identifique em que o Telessaúde ainda pode avançar.
— O próximo passo é ver que novas formas de atendimento podem ser oferecidas para auxiliar o sistema de saúde. Vínhamos aguardando esse momento havia alguns anos. A resolução traz para o Brasil algo que já é realidade em outros países. É a nossa entrada no século 21 — diz Gonçalves.