Desocupado desde a metade do ano, o casarão onde funcionou a primeira Delegacia de Polícia de Porto Alegre, na Rua Riachuelo, no Centro Histórico, poderá se tornar espaço de atendimento especializado. O imóvel, que integra o patrimônio histórico e cultural da cidade, teria sido utilizado para prisões, interrogatório e tortura durante a ditadura militar. Agora, a Polícia Civil tem planos de reformar o prédio e fazer dele um espaço para acolhimento de questões relacionadas a direitos humanos e diversidade.
Designada para usufruto da polícia, a edificação está fechada e exibe sinais de desgaste. A alvenaria da fachada tem rachaduras, as aberturas de madeira estão deterioradas, e há ferrugem sobre a superfície dos metais. O interior, ao qual a reportagem não teve acesso, também estaria com diversas demandas de reparo.
— São vários pontos de reforma: telhado, paredes, piso, madeiras. O projeto foi solicitado para avaliação de valores e prazos. O plano é executarmos obras no ano que vem — pontua o chefe de Polícia Civil do Estado, delegado Fernando Sodré.
Entre as evidências históricas e culturais relacionadas ao local, há pelo menos um apontamento sobre utilização da casa como aparelho de repressão do Regime Militar. O registro consta no Catálogo Resistência em Arquivo: Memórias e Histórias da Ditadura no Brasil, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), e cita o processo para pedido de indenização de um projetista eletromecânico. Identificado como Abelino Finger, relatou ter ficado preso por quatro dias no prédio, no final de 1972.
Finger teria sido acusado pelas autoridades da época de participar de grupo político e alegou ter sofrido maus-tratos, mencionando como consequências da prisão problemas físicos, psicológicos e financeiros.
Porto Alegre dispunha de vários locais utilizados sistematicamente como ambientes de investigação, inquérito, tortura e extermínio de pessoas contrárias ao regime militar. Cada evidência tem grande significado para reconstruir a história.
CLÁUDIO ARI MELLO
Professor de Direito Constitucional da PUCRS
Sodré afirma que desconhecia o registro acerca da relação do prédio com o regime autoritário dos Anos de Chumbo no Brasil. Mas comenta que tal apontamento poderá fortalecer a proposta de utilização do local como delegacia especializada.
— Eu não tinha esta referência, mas, ao ser confirmada, representa um relevante aspecto relacionado à história da nossa sociedade — analisa.
Patrimônio arquitetônico com memória da ditadura
Situado no número 613 da Riachuelo, um dos pontos ancestrais da ocupação açoriana na Capital, o casarão é inventariado pelas autoridades como "imóvel de estruturação".
Conforme o arquiteto e urbanista José Daniel Craidy Simões, membro da Câmara Temática de Patrimônio do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU-RS), trata-se de um bem a ser preservado.
— Representa uma transição do estilo colonial, com algumas alterações prováveis do fim do século 19. É um imóvel que está em um ambiente histórico e integra um importante cenário urbanístico relacionado com a formação da Capital — conta Simões.
A edificação, destaca o conselheiro do CAU, é um dos 401 imóveis de estruturação inventariados pelo poder público municipal. Porto Alegre possui 27 bens tombados pelo patrimônio histórico do município, 15 tombados pelo Estado, e outros 15, pela União.
Para a diretora de Comunicação do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RS), Jéssica Neves, há aspectos notadamente históricos no estilo da construção. Ela cita a elevação com relação ao nível da calçada e a existência do porão. Características, segundo a diretora do IAB-RS, que remetem ao período da "ascensão da burguesia" no cenário urbano de Porto Alegre.
— Estes elementos indicam que os moradores estavam "acima do nível da rua". A elevação da casa simbolizava a condição abastada das famílias naquele período. A presença do porão representa traços da cultura escravocrata, quando escravizados urbanos eram relegados a viver nestes ambientes — descreve Jéssica.
Ela enfatiza, ainda, que o prédio está localizado no mesmo sítio urbanístico que o Solar do Conde, bem tombado pelo município, onde funciona a sede e um centro cultural mantidos pela entidade dos arquitetos.
Para o professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica (PUCRS) Cláudio Ari Mello, a existência de indicativos sobre a Ditadura Militar deve inspirar iniciativas de investigação e preservação de evidências.
— Estamos falando de um período em que havia um grande esforço para esconder fatos e eliminar provas, apagar a história. Porto Alegre dispunha de vários locais utilizados sistematicamente como ambientes de investigação, inquérito, tortura e extermínio de pessoas contrárias ao regime militar. Cada evidência tem grande significado para reconstruir a história — destaca o pesquisador.