Em noites e madrugadas de sextas-feiras e sábados, saíam da cozinha mais de 200 terrinas de sopas. Os caldos quentes serviam bem duas pessoas, acompanhados por fatias de pão d'água e porções de manteiga, queijo parmesão e salsa picada. Esta síntese descreve os idos gloriosos da trajetória sexagenária do Bar e Restaurante Van Gogh, tradicional ponto de encontro boêmio de Porto Alegre, que encerrará suas atividades em 11 de agosto.
O lugar preserva seu visual parecido com o de outrora, numa atmosfera mesclada entre o nostálgico e o melancólico: luz baixa, paredes revestidas de madeira envernizada e piso frio de lajotas 20cmx20cm. Em algumas das faces internas da edificação, reproduções do Quarto em Arles e de dois Autorretratos de Vincent Van Gogh acrescentam personalidade ao cenário.
— Não tenho nada para comemorar. Deixo este lugar com muita tristeza. É um pedaço da história que fica para trás. Vou descansar um ano ou dois, não sei ao certo, mas acho que volto para o ramo de restaurante — conta o proprietário Cláudio Piovesani, 65 anos.
Aqui era a casa da boemia. Mas a boemia acabou
CLÁUDIO PIOVESANI
Proprietário do Bar e Restaurante Van Gogh
Natural de Putinga, no Vale do Taquari, chegou na Capital nos anos 1980, depois de ter trabalhado em comércios de alimentação em São Paulo e no Rio de Janeiro. Piovesani diz ter servido variedade de sopas nos 31 anos nos quais administrou o espaço na esquina da Avenida João Pessoa com a Rua da República.
— Canja de galinha, sopa de capeletti, cremes de cebola e ervilhas. Tinha opções para diferentes gostos, pois havia variedade de pessoas para comer. Hoje isso não existe mais. É a geração do hambúrguer. O aluguel ficou caro e a receita é pouca. Estou triste nesta decisão — desabafa.
O empresário fala com timidez sobre a longa caminhada. Faz isso, enquanto cozinha ele próprio a canja que será servida na madrugada desta sexta (2). Não há mais funcionários. Piovesani atende, anota pedidos, prepara refeição, conversa com quem puxa assunto.
Entre as memórias, relata ter servido Caetano Veloso, Jamelão, Jorge Ben e artistas de TV que passaram por Porto Alegre. Diz ter ouvido que Lupicínio Rodrigues matava a fome por lá após suas jornadas boêmias, mas antes dele ter assumido o negócio.
— Aqui era a casa da boemia. Mas a boemia acabou — lamenta, em timbre de despedida, quase silencioso.
Em 2020, o lugar quase fechou, em meio às restrições decorrentes da pandemia. Resistiu. Reencontrou o destino anunciado depois da enchente de maio, que não inundou o Van Gogh, mas acentuou mudanças de consumo e comportamento na capital gaúcha.
Sabor de comida de avó a preço módico
A última semana de serviço da cozinha madrugadora e longeva do Van Gogh terá sopas, ao menos até sábado (10), conforme o desejo do proprietário.
Na quinta-feira (1º) à noite, foi a vez do engenheiro Vicente Rauber, que diz preferir não revelar a idade para não surpreender as pretendentes românticas, ensaiar a despedida.
— Poderei voltar mais uma ou duas vezes nesta última semana. É uma pena que isso vai acontecer. Gosto daqui, da comida e das amizades — aponta Rauber.
Ele revela sua predileção por canjas e capelettis, enquanto banha uma fatia de pão no caldo da primeira entre as duas receitas. Lambuza outro naco com manteiga e morde. Recarrega o prato fundo com mais conchada. Sapeca salsa picada e queijo ralado por cima.
— Uma cidade grande precisa de vida boêmia. Este lugar representou isso por muitos anos. A comida é uma delícia e veja: vou gastar pouco mais de R$ 30 pela refeição e uma bebida. São coisas que não se vê mais por aí — define um dos últimos clientes fieis do Van Gogh.