Meio de tarde quente de março, o carregador autônomo Máicon Santos, 33 anos, faz um breve intervalo na jornada. No interior do galpão do produtor da Ceasa de Porto Alegre, no bairro Anchieta, ele senta sobre o carrinho no qual diariamente puxa uva, cebola e tomate.
De óculos escuros, colete amarelo que caracteriza o carregador autônomo e calção vermelho da Nike, ele pita um cigarro enquanto escuta piadas de um vendedor. Atrás dele, uma caixinha de som reproduz música que se mistura ao intenso burburinho do galpão do produtor, um legítimo mar de gente.
Ainda adolescente, Santos foi levado à Ceasa pelo sogro. Começou como vigia de caminhão, ganhando R$ 20 por dia. Depois, passou a carregador, atividade que exerce ainda hoje, com diárias variáveis entre R$ 200 e R$ 350. Somando 16 anos de Ceasa, ele não pretende sair dali.
— É um mercado que gira muita vaga de emprego. Chego a tirar R$ 1 mil na semana. Se eu sair, não recebo o mesmo fora — afirma Santos.
Enquanto isso, nos corredores, outros carregadores gritam e assobiam para alertar os desavisados de que a prioridade de trânsito é deles. Um desses trabalhadores, após despachar uma carga, se locomove bebericando um latão de Schin. O cheiro de fritura paira no ar, vindo dos bares e restaurantes que preparam petiscos e boias. Numa das portarias, carregadores e atendentes de lancheria discutem futebol.
Fundada em 8 de março de 1974, a Ceasa de Porto Alegre completa o seu primeiro cinquentenário nesta sexta-feira (8) como expressão popular, garantia de variedade de hortifrutigranjeiros e uma das fiadoras da segurança alimentar do Rio Grande do Sul. Um ambiente em que, nas concorridas quintas-feiras, circulam cerca de 30 mil pessoas.
Passado, presente e futuro
A Ceasa foi oficialmente inaugurada em março de 1974 sob o slogan “a solução gigante do abastecimento”, em cerimônia com a presença do então presidente Emílio Garrastazu Médici, da ditadura civil-militar, que estava nos últimos dias de mandato. Deslocada para o extremo norte de Porto Alegre, próximo de saídas rodoviárias para o escoamento, a Ceasa surgiu para substituir a antiga “feira da Praia de Belas”, que funcionava na região central da Capital de forma precária.
Antes da inauguração, a Ceasa operou a partir de 25 de setembro de 1973 de maneira experimental no mesmo local em que permanece hoje. Em outubro daquele ano, registros históricos apontam que foram comercializadas 10,3 mil toneladas. A estatística mais recente aponta que, em 2023, a Ceasa vendeu 577 mil toneladas - média mensal de 48 mil toneladas.
Os empresários atacadistas e pequenos produtores que atuam na companhia divergem sobre o momento e o futuro, mas os números são expressivos: cerca de 54% dos hortifrutigranjeiros comercializados no Estado semanalmente saem da unidade de 42 hectares do bairro Anchieta.
Lá se encontra a oferta de até 174 variedades de verduras, legumes e frutas de produtores rurais de 122 cidades gaúchas, 24 Estados e 11 países — com destaque para Argentina, Chile, Uruguai, Espanha e Nova Zelândia. As importações e aquisições junto a outros Estados são feitas pelas 303 empresas atacadistas. Elas atuam na área dos boxes e sua especialidade é comprar e revender, principalmente para supermercados.
— A gente consegue oferecer à população um produto mais barato. Trazemos bastante quantidade e isso mantém o preço estável. O segredo é saber onde tem a produção e ter os contatos certos — afirma Sergio Di Salvo, 65 anos, diretor da Unisalvo.
Nascido na Itália, Di Salvo começou na Ceasa aos 18 anos, em 1978, trabalhando no negócio da família. Somente na Unisalvo, ele está com 50 empregados. Para o empresário, a Ceasa “vai durar muito tempo”.
— O forte é o mix. Tu encontras todo o tipo de produto em um lugar. Só a Ceasa proporciona isso. Vira um atrativo — avalia Di Salvo.
Consultor da FAO Brasil, organização das Nações Unidas (ONU) para alimentação e agricultura, Altivo Almeida Cunha avalia que as centrais têm “papel fundamental”.
— A Ceasa de Porto Alegre está entre as maiores do país e reúne a produção em um centro logístico. São as centrais que abastecem a imensa rede de varejo: os mercados, os sacolões e os restaurantes. Fazem a ponte entre a produção rural e o consumo urbano — diz Cunha, destacando a relevância para a segurança alimentar.
As avaliações positivas de Di Salvo e Cunha contrastam com a de Alverino Silveira Escobar, o Dico. Aos 77 anos, ele atua na Ceasa desde o período pré-inaugural. Atacadista, lembra saudoso do tempo em que vendia três mil caixas de tomate por semana. Dico não apresentou números, mas apontou um pequeno amontoado da variedade que estava exposto em seu box para dizer que, nos dias de hoje, está comercializando “uma mixaria”.
O galpão do produtor fica alguns metros distante do espaço dos atacadistas. Neste ambiente, atuam 1.570 agricultores cadastrados para vender diretamente ao consumidor o que plantam e colhem nas suas propriedades. É uma modalidade em que ganha destaque o pequeno produtor.
— As Ceasas são elemento indutor do desenvolvimento. Em alguns casos, são o único canal de comercialização de produtos da agricultura familiar, que nem sempre conseguem se inserir nos supermercados ou feiras — afirma Cunha, um dos principais pesquisadores do tema no Brasil.
Alexandre Guterres Fraga passou a maior parte da sua vida no galpão do produtor. Aos 44 anos, atua desde os 13 na banca da família. Ele planta em Viamão e vende na Ceasa alface crespa, tempero verde e couve. Fraga se equilibra entre o pessimismo e o otimismo. Relata que, há um ano, não vai mais ao galpão às segundas-feiras, que já foi o seu dia mais forte de venda. O movimento está fraco, diz ele, com queda de 50%. Fraga comenta que isso começou na pandemia de coronavírus, com uma mudança de comportamento dos donos de restaurantes que se mantém.
Em vez de ir à Ceasa comprar, esses comerciantes estão exigindo entrega nos seus estabelecimentos. Isso abre dificuldades logísticas e retira clientela da central. Ele ainda menciona concorrência desenfreada no preço na modalidade de venda externa. Sopesando prós e contras, diz não ter encontrado outros pontos em que possa atuar de forma rentável.
— Tenho clientes de mais de 20 anos. A Ceasa ainda é atrativa — comenta Fraga.
A central de Porto Alegre é uma empresa estatal do governo do Estado, ligada à Secretaria de Desenvolvimento Rural. A natureza jurídica permite dar impulso à política pública de combate à fome.
— O nosso Banco de Alimentos abastece 140 entidades comunitárias e 260 famílias de idosos que, toda semana, frequentam as feiras que fazemos com as doações. Por mês, distribuímos entre 80 toneladas e 90 toneladas de hortifrutigranjeiros — diz Carlos Siegle, diretor-presidente da Ceasa.
Ambiente mais humano e seguro
São unânimes as opiniões de que a Ceasa de Porto Alegre é, nos últimos anos, um ambiente mais humano e seguro. Os relatos são de que ficaram para trás os episódios de machismo obsceno, tráfico e consumo de drogas, roubos e furtos. Medida considerada fundamental para isso foi a inversão do turno de funcionamento. A partir de 1º de maio de 1999, a Ceasa deixou de receber público na madrugada e passou a abrir as portas nos turnos da manhã e da tarde. Nos anos seguintes, houve reforço na segurança privada armada, cadastro de trabalhadores com biometria e acesso por catraca. Desde 2019, foram instaladas 227 câmeras de monitoramento.
— As ocorrências diminuíram 90% — diz o supervisor de segurança Sidnei Schaffer, 46 anos.
Hoje é normal ver mulheres trabalhando e comprando na Ceasa. O ambiente, avaliam as pessoas que presenciam a rotina, é de respeito.
— Se entrava uma mulher era um griteiro no pavilhão todo. Era vergonhoso. Hoje tem bastante mulher. Nos restaurantes elas são maioria. Melhorou muito — afirma o produtor Alexandre Guterres Fraga.
Cleonice Rodrigues, 52 anos, exerceu diferentes funções na Ceasa e, há cerca de nove anos, é carregadora autônoma, uma atividade que antigamente era exclusividade de homens. Ela é testemunha da mudança.
— Se vinha mulher, metiam a mão. Palavra era de baixo calão. Aqui ninguém mais abusa com mulher. Ainda existe preconceito, mas melhorou muito. Hoje a gente se ajuda. Me sinto segura — afirma Cleonice.
A melhora do ambiente também é confirmada pelo carregador autônomo Máicon Santos:
— Tinha gente que vendia droga aqui dentro. Não tem mais. Mudou da água para o vinho.
Desenvolvimento do bairro Anchieta
Os mais antigos comerciantes da Ceasa, como Sergio Di Salvo, comentam que na década de 70, quando a central passou a operar, havia limitada estrutura no bairro Anchieta. Ao longo de 50 anos, o urbanismo e os negócios se desenvolveram no entorno da Ceasa.
— As centrais foram instaladas na periferia das cidades, até afastadas dos centros, para ter logística melhor. E elas começaram a gerar uma série de negócios para além dos seus muros. Transportes, mecânica, armazéns, câmaras frias, serviços e escritórios de advocacia e contabilidade estão no entorno — diz Altivo Almeida Cunha, consultor da FAO Brasil para mercados atacadistas.
Maior controle de resíduos de agrotóxicos
Em dezembro de 2016, o Grupo de Investigação da RBS (GDI) publicou reportagem mostrando que, dentre 20 produtos da Ceasa testados em laboratório, nove (45%) continham resíduo de produto químico acima do permitido pela legislação.
Depois do episódio, a Ceasa criou, em 2018, o programa Alimento Seguro, em parceria com o Sebrae e o Ministério Público. A iniciativa mescla cursos de boas práticas com 240 análises anuais de laboratório. No primeiro ano, em 2018, 39% das amostras tinham inconformidades. Em 2022, o indicador despencou para 19%. O produtor que é flagrado em situação imprópria é notificado, encaminhado para reciclagem e, em caso de reincidência, pode ter suspenso o direito de comercialização.
Ceasa em volume de hortifrutigranjeiros e de negócios*
2023
- 577 mil toneladas
- R$ 2,4 bilhões
2022
- 573 mil toneladas
- R$ 2,4 bilhões
2021
- 605 mil toneladas
- R$ 1,8 bilhão
2020
- 634 mil toneladas
- R$ 1,7 bilhão
2019
- 607 mil toneladas
- R$ 1,5 bilhão
2018
- 611 mil toneladas
- R$ 1,2 bilhão
Ceasa em números*
- 1.570 produtores cadastrados para vender no GNP (galpão do produtor)
- 303 empresas atacadistas
- 4.139 trabalhadores com cadastro ativo
- 625 carregadores autônomos
- 14 lancherias
- 5 restaurantes
- 4 açougues atacadistas
- 2 peixarias atacadistas
Maiores Ceasas do Brasil em volume de hortifrutigranjeiros**
Dados de 2022
- São Paulo - 2,9 milhões de toneladas
- Juazeiro (BA) - 1,7 milhão de tonelada
- Rio de Janeiro - 1,5 milhão de tonelada
- Grande BH - 1,4 milhão de tonelada
- Curitiba - 872 mil toneladas
- Goiânia - 866 mil toneladas
- Recife - 783 mil toneladas
- Campinas - 587 mil toneladas
- Porto Alegre - 573 mil toneladas
- Salvador - 524 mil toneladas
*Fonte: Ceasa RS
**Fonte: Companhia Nacional de Abastecimento (Conab)