Já era noite, 40 anos atrás, quando uma multidão de 5 mil pessoas espremida entre corredores e escadarias assistiu ao início da tão esperada cerimônia de inauguração do primeiro shopping center de grande porte do Estado.
Comerciantes, autoridades e convidados testemunharam mais do que a simples entrega do portento de 55 mil metros quadrados na zona norte de Porto Alegre: viram surgir um novo modelo de consumo que ajudaria a redesenhar a cidade e revolucionar antigos padrões de comportamento. O município conta hoje com 16 empreendimentos desse tipo, de acordo com a Associação Brasileira de Shopping Centers (Abrasce), que agora buscam incorporar novas tendências como serviços de coworking, educação e saúde.
Ao longo dessas quatro décadas, o comércio se descentralizou cada vez mais, os cinemas migraram das calçadas para o interior de grandes estruturas, e uma área até então ocupada por chácaras onde se cultivavam hortas e se criava gado transformou-se em um novo polo de desenvolvimento marcado pela valorização dos terrenos próximos e pelo adensamento populacional estimulados pela novidade apresentada naquele 13 de abril de 1983.
Quando o Shopping Iguatemi foi aberto ao público, na manhã seguinte, o empreendimento representava um desafio às tradições de como a população da Capital costumava fazer compras. O Centro Histórico, com seu comércio variado que incluía pequenos estabelecimentos e grandes lojas de departamento, até então era o destino preferencial de quem quisesse adquirir desde um par de meias até uma joia de ouro. Lá ficavam as tradicionais casas Krahe e Louro, a Sloper e a J.H Santos, entre outras marcas clássicas. As imediações das avenidas da Azenha e Independência eram outras referências comerciais na metrópole.
Em comparação, no começo dos anos 1980, a área onde seria erguido o prédio de dois pavimentos na confluência dos bairros Chácara das Pedras e Passo D'Areia era vista como uma lonjura onde se penava para chegar mesmo de carro. A Avenida Nilo Peçanha nem se estendia até lá. Terminava logo depois de passar pelo Colégio Anchieta e dava lugar a uma estradinha de chão batido. Tudo mudaria de forma radical em um período de apenas um ano e 10 dias de obras.
O Iguatemi, na verdade, não foi o primeiro prédio destinado a reunir diferentes tipos de comércio em um único espaço no município. Lançado em 1970, o centro comercial João Pessoa já havia importado a ideia — difundida principalmente nos Estados Unidos — de reunir lojas em uma estrutura fechada. Mas as dimensões mais comedidas, com 15 mil metros quadrados, e o fato de se localizar em uma zona contígua ao Centro não deflagaram as transformações sociais e econômicas que teriam início na década seguinte.
Um dos impactos mais imediatos provocados pelo projeto na Zona Norte foi a transformação do entorno. Antes da primeira estaca ser cravada no solo, o terreno de 96 mil metros quadrados — equivalente ao tamanho de 13 campos de futebol — em tudo se assemelhava a uma área rural de algum município do Interior: estradas de terra nua serpenteavam entre vegetação, hortas e gado leiteiro. A entrega do gigante de concreto deflagraria uma das mais intensas e rápidas metamorfoses urbanas que a Capital conheceu.
Em urbanismo, não costumamos dizer que apenas uma coisa provoca algo em uma cidade. Mas, nesse caso, o shopping foi o único fenômeno diferente naquela região que explica a valorização imobiliária que houve ali.
CLARICE MARASCHIN
Urbanista
— Em urbanismo, não costumamos dizer que apenas uma coisa provoca algo em uma cidade. Mas, nesse caso, o shopping foi o único fenômeno diferente naquela região que explica a valorização imobiliária que houve ali. A zona era tomada por chácaras, e a urbanização ocorria apenas por fora. A abertura do Iguatemi, que teve a extensão da Avenida Nilo Peçanha como contrapartida, formando uma grande esquina urbana com a João Wallig, permitiu o avanço da urbanização para uma nova área da Capital — explica a urbanista e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Clarice Maraschin, autora da dissertação de mestrado Alterações Provocadas pelo Shopping Center em Aspectos da Estrutura Urbana — Iguatemi, apresentada em 1993.
A abertura de novas vias, que facilitaram a acessibilidade, e a simples perspectiva de implantação do empreendimento passaram a valorizar o metro quadrado antes mesmo da entrega ao público. Ao analisar centenas de ofertas de terrenos ao longo do tempo, Clarice descobriu que, quando a construção ainda não havia começado (entre 1979 e 1981), os preços dos imóveis nas imediações indexados pelo dólar tinham uma variação negativa que chegava a 2,3% ao mês. Essa queda diminuiu para 0,9% durante as obras e, depois da entrega (de 1984 a 1990), passaram a ter valorização de 0,71% frente à variação da moeda americana. Isso ajuda a explicar porque as áreas próximas rapidamente deram lugar a novos condomínios e, em razão do crescimento urbano vertiginoso, até a um segundo centro comercial de grande porte localizado ao lado — o Bourbon Shopping Country, lançado em 2001.
A corrida pela nova fronteira de desenvolvimento da Capital se consolidaria nas décadas seguintes. Dados posteriores levantados pela urbanista demonstram que a região do entorno do Iguatemi (formada por partes dos bairros Boa Vista, Três Figueiras, Chácara das Pedras, Passo D'Areia, Vila Ipiranga e Vila Jardim, posteriormente acrescida do Jardim Europa) cresceu a um ritmo muito superior ao da média de toda a cidade. Enquanto a densidade demográfica da Capital aumentou 3,6% entre os anos 2000 e 2010, esse índice disparou 16,95% na zona de influência do shopping e chegou a 151 habitantes por hectare, contra a média municipal de 28 por hectare. A corrida por imóveis nas proximidades facilitou até mesmo a criação de um novo bairro, o Jardim Europa, atualmente entre os mais valorizados da Capital.
— A presença de um shopping center também pode incentivar o surgimento de novos negócios na região, ampliando as oportunidades de trabalho e renda para a população do entorno — avalia o presidente da Abrasce, Glauco Humai.
Os dados confirmam esse fenômeno. Entre 2000 e 2010, conforme Clarice Maraschin, a rendimento mensal médio do responsável pelo domicílio disparou 56,8% nas imediações do Iguatemi, enquanto cresceu 16,5% em toda a cidade.