O período de consolidação dos shopping centers de grande porte na Capital, a partir da inauguração do Iguatemi na Zona Norte, 40 anos atrás, estimulou mudanças em padrões de consumo e de lazer da população que perduram até hoje, como a migração dos cinemas, o fim da era de ouro do comércio no Centro e a ampliação dos dias e horários disponíveis para compras.
Uma das transformações mais significativas foi o desaparecimento dos cinemas de rua, como eram conhecidas as salas com abertura direta para as calçadas da cidade. Chegaram a somar mais de 30 estabelecimentos nos anos 1980, mas passaram a minguar e fechar as portas nas décadas seguintes, um a um, até restarem hoje apenas opções como a Cinemateca Capitólio — bastante diferente das operações comerciais que atraíam multidões e formavam filas nas calçadas para assistir a lançamentos como E.T (1982), O Exterminador do Futuro (1984) ou Ghost — Do Outro Lado da Vida (1990).
A decadência dos antigos cines, não verdade, não teve início com a chegada do primeiro grande centro comercial da cidade — o Iguatemi só disponibilizou suas primeiras telas já no início dos anos 1990, quando a exibidora Severiano Ribeiro se instalou no local.
— O primeiro grande shopping a ter salas foi o Praia de Belas, quando os cinemas de rua já enfrentavam problemas por razões como falta de comodidade, uma vez que as filas se formavam na rua, insegurança e dificuldade para estacionar, por exemplo. Quando apareceram os shoppings, as exibidoras viram nisso uma oportunidade e migraram — afirma o vice-presidente da Federação Nacional das Empresas de Cinema e sócio-diretor do GNC, Ricardo Difini Leite, que começou a operar no Iguatemi em 2008, depois da saída da Severiano Ribeiro.
A busca por maior conforto e segurança, além da possibilidade de combinar esse tipo de lazer com outras atividades como compras, serviços ou gastronomia, acabou por selar o destino dos velhos cines como Baltimore e Bristol, na Osvaldo Aranha, Imperial e Guarany, na Rua dos Andradas, o Avenida, na esquina da João Pessoa com a Venâncio Aires, ou o Marrocos, na Getúlio Vargas.
O impacto dos novos templos do consumo também alterou os hábitos da população para fazer compras ou buscar serviços. Se cada uma dessas atividades costumava exigir deslocamentos para diferentes partes da cidade, passaram a ficar cada vez mais concentradas e afastadas do Centro.
— Esse formato de varejo moderno impacta muito na cidade e na vida urbana. As compras passam a ser agrupadas e combinadas com serviços. Tu vais em uma ou mais lojas, passa no supermercado, pode até fazer uma consulta (de saúde). O ruim é que os antigos centros das cidades, pelos quais temos tanto carinho, foram ficando esquecidos. Por isso, há um esforço nas grandes cidades para resgatar os centros históricos hoje — analisa a urbanista Clarice Maraschin.
Como resultado desse cenário, marcas tradicionais e grandes lojas de departamento acabaram perdendo terreno nas vias centrais de Porto Alegre, como Alfred, Manlec, Mesbla, Livraria do Globo, Hermes Macedo, Guaspari e tantas outras. Outra alteração impulsionada pelos shoppings foi a abertura das lojas até mais tarde, chegando às 22h, e aos finais de semana.
— Praticamente todo o comércio funcionava na cidade de segunda a sábado até o meio-dia. Depois disso, não tinha mais onde comprar. Com a chegada do Iguatemi, negociamos inicialmente com os lojistas para abrir até as 18h de sábado, depois até as 22h. Mais recentemente, o horário de funcionamento também incluiu os domingos — recorda a gerente-geral do shopping, Nailê Santos.
Todas essas transformações foram acompanhadas desde a véspera da inauguração pela comerciante Fátima Scheid, 62 anos, que começou a trabalhar no Iguatemi dias antes da abertura ao público e hoje segue atuando no local como gestora da joalheria Bergerson. A novidade foi tão grande que, nos primeiros anos, era comum grandes grupos se organizarem para visitar a estrutura.
Era algo completamente diferente do que as pessoas conheciam, de lojas de rua e marcas locais. Por isso, vinham até excursões para cá. Também eram comuns passeios em família, com todo mundo muito bem arrumado, um evento.
FÁTIMA SCHEID
Comerciante
— Era algo completamente diferente do que as pessoas conheciam, de lojas de rua e marcas locais. Por isso, vinham até excursões para cá. Também eram comuns passeios em família, com todo mundo muito bem arrumado, um evento. Vi tudo isso acontecer aqui nesses corredores — recorda Fátima, que atualmente atende até a terceira geração dos primeiros clientes.
No horário do meio-dia, quando o tradicional relógio de água despejava todo o líquido para voltar a encher, era comum multidões se aglomerarem nas proximidades. Depois de quatro décadas, multidões seguem frequentando os shoppings da Capital — embora de forma menos solene. No Iguatemi, a média diária de visitantes ficou em 26,6 mil pessoas ao longo do ano passado. Isso equivale à população de uma cidade de médio porte como Veranópolis, na Serra, ou São José do Norte, no Sul.
Para dar conta da segurança desse universo de frequentadores, passou a ser necessário um aparato de proporção igualmente gigante. O centro de compras conta com um contingente aproximado de 120 pessoas para manter a vigilância nos corredores, planejar e supervisionar as operações e monitorar as imagens das câmeras de segurança. Nas grandes telas localizadas na sala de controle, onde o acesso é restrito, é possível observar os registros de nada menos do que cerca de 400 câmeras espalhadas pelos espaços de circulação, estacionamentos e nas áreas de escritórios.
Datas comemorativas contam com planos de contingência específicos, para dar conta de imprevistos, e reforço no treinamento das equipes para lidar com números ainda mais elevados de clientes e situações de estresse que podem ser deflagradas em determinados períodos.
— O plano de segurança para o Natal, por exemplo, é preparado com 40 dias de antecedência. Também temos preocupação em preparar psicologicamente a equipe para períodos de grande intensidade, com corredores lotados e estacionamento cheio — revela o supervisor de segurança, Marcus Vinícius da Silva, 46 anos.
Para manter o público fiel, os principais shoppings de Porto Alegre procuram seguir incorporando novas tendências. Atualmente, conforme Nailê Santos, o foco é oferecer mais opções de bem-estar e diferentes "experiências", que incluem cada vez mais opções gastronômicas e operações vinculadas a saúde e educação.
— Procuramos acompanhar tendências de consumo até para nos anteciparmos. Hoje as pessoas buscam cada vez mais bem-estar, por isso oferecemos academia, operações que oferecem procedimentos estéticos, e uma unidade do Hospital Moinhos de Vento, além de experiências que passam por opções diferenciadas de gastronomia. Tínhamos três restaurantes, hoje temos 10, fora 39 outras operações de gastronomia — afirma a gerente do shopping quarentão que ajudou a moldar a cidade.