As memórias e personalidades do casarão amarelo de número 527 da Rua José do Patrocínio, onde o Bar Apolinário funcionou entre 2006 e 2020, demolido nesta semana, poderão continuar vivas em um novo local. O tradicional boteco da Cidade Baixa fará parte de um complexo residencial construído pela Melnick, compradora do terreno onde agora restam apenas os escombros da casa, que tinha cerca de 70 anos, de acordo com o dono do bar, Alessandro Ricoldi, 50 anos.
Depois de dois anos fechado pela pandemia, o Apolinário voltará a servir seus chopes e refeições no número 552 da Rua da República, em outro lado da mesma quadra. O espaço original dará lugar ao canteiro de obras da incorporadora nos próximos dois anos. A ideia é que o bar volte ao local original até 2025, quando o proprietário espera encontrar a nova estrutura prometida pela construtora em troca do terreno.
— Toda mudança tem prós e contras. O Apolinário foi pensado e fez a tradição dele naquele casarão, era um imóvel com muita história. Bandas nasceram naquele pátio, já ouvi relatos de visitas de Elis Regina e Phil Collins, na época em que o casarão ainda era o Macumba. Os arquitetos terão que “dançar” para transferir tanta memória para os novos locais — comenta o dono do bar.
Macumba foi a primeira boate a funcionar no casarão da José do Patrocínio, nos idos de 1970, segundo Ricoldi. O pátio interno também serviu de palco para bandas e encontros musicais nos anos seguintes, com estrutura física mantida, mudando apenas o nome. Nos anos 1980, foi Água na Boca, e nos 1990, Vivo pra Isso. Por último, no começo do século 21, era chamado de Groove, antes de ser comprado pela família Ricoldi e virar um bar menos festeiro, o Apolinário, em 2006.
— Quando entramos pela primeira vez no casarão, em 2005, era para ele ter sido demolido para construírem um prédio novo ali. Alguma coisa impediu que essa transação acontecesse, não lembro bem o quê, e ele ficou por ali, então compramos. Foi um longo e demorado período de reformas até o nosso bar surgir — relembra Ricoldi.
Apoli... quem?
O leitor que correu para uma pesquisa na internet para descobrir quem era a personalidade que deu nome ao bar se enganou caso tenha encontrado alguma referência ao escritor e professor gaúcho Apolinário Porto Alegre. O rosto masculino com cabelos brancos começando depois de uma testa prolongada pela calvície, acima das vestes e do bigode típico dos anos 1920, pode até lembrar um pouco a ilustração que o bar traz no emblema. Porém, o nome do boteco não foi inspirado no autor de O Vaqueano, protagonista da cultura e da política regional no final do século 19.
Segundo Ricoldi, a escolha do nome aconteceu durante as reformas, enquanto a família decidia como se chamaria o bar e ele lia o livro O Anjo e o Resto de Nós, de 1998, primeira obra da escritora gaúcha Leticia Wierzchowski — nacionalmente conhecida por ter escrito A Casa das Sete Mulheres. Personagem do texto, Apolinário Flores era botânico, especialista em perfumes e patriarca da família do interior do Estado cuja história é contada no romance. No entanto, o fictício vovô Flores não compartilha mais nada com a personalidade do bar.
— Levei o nome para debate. Soou bem, a gente não cansava de repeti-lo, como cansava de repetir outras sugestões. Lá pelas tantas, todo mundo aceitou. Mas é só isso, o nosso Apolinário (o bar) não tem muito a ver com o florista do livro nem com o professor que existiu na vida real, apesar de também ser um lugar democrático e agregador — garante Ricoldi.
Do fechamento temporário à demolição permanente
Assim como todos os outros comércios e bares da cidade, o Apolinário sofreu com a pandemia do coronavírus. Em março de 2020, o casarão foi fechado, com as atividades sendo mantidas para telentregas. Ricoldi conta que quando tentou reabrir contraiu covid-19 e desistiu de voltar ao atendimento presencial. Assim, a segunda tentativa, agendada para a metade de 2021, foi substituída pela negociação com a Melnick. O terreno do imóvel antigo, na Rua José do Patrocínio, foi cedido em troca da construção de um bar menor, provisório, na via ao lado, e uma futura instalação de volta ao local original.
— Me surpreendi com a demolição — declara a aposentada Elisabete Pacheco, 60, vizinha e ex-frequentadora do Apolinário original, enquanto observava da calçada as pedras da demolição amontoadas, na manhã de quarta-feira (28). — Vim algumas vezes, era um bom ambiente, aconchegante. Era uma casa bonita, mesmo que construam algo novo aqui, era uma fachada que podia ter ficado como entrada — avalia.
— Acho preocupante que prédios como este ainda estejam sem a proteção do patrimônio histórico — comenta outro morador da mesma rua, o servidor público Daniel Medeiros, 40.
Um dos funcionários da empreiteira que trabalhava no recolhimento dos escombros, dias depois da demolição, não sabia o que funcionava antes ali, mas suspeitou ao encontrar garrafas de cerveja vazias. Os azulejos e paredes de cores diversas permaneciam intocados desde o fechamento do bar, em 2020.
— O nome vai seguir, a referência histórica, também. Já tínhamos o projeto de abrir uma nova unidade remontando à história da Cidade Baixa. Manteremos o tradicional balcão no bar novo, por exemplo — Ricoldi projeta.
Dobrando a esquina
A casa provisória do Apolinário fica onde antes funcionava o restaurante Aquavit — outro fechado pela pandemia, em agosto de 2020. A nova fachada, na Rua da República, é menor que a do casarão original e toda preta. O ambiente interno está em obras, mas em fase de conclusão, com o balcão já praticamente pronto.
O Apolinário provisório será vizinho do Casa Mata — onde funcionava a festa Casa do Lado — e de uma unidade do Koa Café — que tem sede no bairro Auxiliadora. As três foram instaladas ali pela incorporadora, que constrói um complexo residencial que terá uma entrada na República e outra na José do Patrocínio. As obras do bar devem ser concluídas em maio, e a reabertura é prevista para junho.